Mais um sonho de texto da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta, um pai “sabe tudo” fica embasbacado para responder uma pergunta do filhinho. Afinal, como diz o cantor e compositor Arnaldo Antunes, “crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Mas nem todas as respostas cabem num adulto”.
““Pai, o ganso sonha com o quê?”, perguntou o filho do Bucco*. O pai estranhou e pediu pro menino repetir. Será que tinha uma pegadinha ali no meio e ele não se deu conta? Examinou cada palavra em busca de um trocadilho, de um sentido duplo ou de coisa que o valha.
É, bem que parecia uma pegadinha, mas não daquela vez não era, não. Afinal, o menino não estava sacolejando por dentro nem soltou uma gargalhada após apontar para a cara de bobo do pai adulto. A seriedade com que a criança perguntou dava indícios de que se tratava de curiosidade verdadeira. Era uma daquelas coisas que saem da cachola dos mais novos que deixam os mais compridos tão encabulados quanto quando eles nos perguntam de onde vêm os bebês.
O fato é que Bucco tinha se desconcertado – logo ele, que era um mestre na arte de resolver problemas, empacara. Agora ele tinha porque tinha que arrumar uma resposta, não queria ficar com cara de besta diante do filho, dizer que não sabia, que tinha mais o que fazer. Ele que matutasse, que ruminasse, que chegasse a uma conclusão, enfim.
Os Buccos nem sempre têm estudo, mas geralmente têm tutano. Senão não conseguiriam passar pelos inúmeros contratempos do dia a dia, ficariam no pasto que nem burros, sem sombra. Ele não se gabava pras crianças, não era isso que ele dizia de quando em quando, aos quatro ventos, cheio de si, orgulhoso? Ele que se virasse.
Tinha tempo pra isso, foi o que lhe passou pela cabeça quando já estava montado na bicicleta com a caixa de ferramentas amarrado ao banco de trás, como de costume.
Mal chegou ao primeiro endereço e se deu conta de que teria um dia daqueles. Pregou quadros em paredes, trocou maçanetas de portas, fez com que duas gavetas de um armário de cozinha finalmente voltassem a deslizar, e de quebra, serviço extra, trocou um chuveiro elétrico para um pobre de um Cappelli* que tinha vertigens sempre que subia em escadas.
Era um bom sujeito aquele freguês, bonachão e espirituoso, não discutia preço, não tinha o hábito de barganhar nem por esporte. Era uma pena que ele não fosse lá muito versado em charadas ou coisas do tipo. Ele poderia responder à pergunta que até aquele momento ia e vinha na cabecinha do Seu Bucco – que era assim que o pessoal daquela família o chamava, cheia das reverências.
Com eles almoçou. Eles faziam questão, sempre fizeram. Eles repararam que o velho Bucco, conhecedor de muita coisa e conhecido bom de garfo, não comeu quase nada daquela vez. Até as crianças da família estavam com o prato mais cheio do que o dele. Poucas vezes se viu, conta-se nos dedos da mão, um homem daquela fama de glutão comer assim tão pouco, feito passarinho.
Não era desfeita, ainda que assim o acusassem entre risos de galhofa. É que ele estava meio de dieta, e disposto a adquirir novos hábitos, estava chegando para ele a idade de certas preocupações com a saúde. Era chegada a hora de prestar atenção tanto no que se comia quanto no que se bebia. E de cigarro ele não passava mais nem perto. O cafezinho ele ainda tomava por prazer e por educação. De cachaça nem um dedinho.
À tarde foi orçar mais dois serviços. Ficou meio receoso com um, pois afinal se tratava de reparar telhados. Será que ele ainda tinha idade pra tanta aventura? Ficou de fazer ou de pensar em alguém pra ajudá-lo. Não era difícil a tarefa, mas sem ajudante não dava mais. Mentalmente calculou o preço do ajudante. Quem poderia fazer o serviço com ele? A saber.
O outro era consertar uma bomba d´água, galho fraco, dava pra fazer hoje mesmo. Aproveitaria pra recomendar uma limpeza da cisterna, afinal de contas ela não ficaria quase vazia? Essas máquinas duram muito mais quando não se espera quebrar pra se fazer a manutenção devida.
Chegou ao seu domicílio à noitinha depois de ter trocado três lâmpadas, ter dado um jeito em uma porta de armário absolutamente empenada, e desentupido uma pia de cozinha que não era pra lhe ter dado o trabalho que deu. O sifão estava, como sua velha mãe dizia, em petição de miséria.
Ele não dizia pra ninguém mas sentia falta da mãe, daqueles tocos de frases que ela proferia, de sabidos ditados populares, do seu léxico cheio de uma sabedoria que já se foi pelo ralo ou que está por aí se renovando na boca do povo, vá saber.
Da cozinha vinha um cheiro de cozido que a senhora Bucco estava preparando. Não há comida melhor pra repor as energias do que um belo “Buccozido”. Com os salgados, legumes e o pirão.
Foi quando se fez a luz. Ele descobriu com que o ganso sonhava. Era isso. Quem fabrica o sonho é um cozinheiro que prepara a refeição com o que tem à disposição e sempre com o intuito de matar a fome. A fome que, se não for saciada, é capaz de deixar gente doente.
Correu até o quarto com uma alegria que quase brilhava para revelar ao menino, com o seu filho, que brincava num videogame que de tão fora de moda parecia vintage.
Com o quê o ganso sonha? Com milho, é claro, só pode ser com milho. O filho achou boa a resposta e deu a charada por encerrada, nem precisou que o pai lhe explicasse tintim por tintim os porquês. Foram jogar corrida de carrinhos de Fórmula 1.
E a mulher lhes disse que só serviria o jantar depois que os dois tomassem um bom banho, que ela não iria servir ninguém sujo. Que ninguém tivesse a ousadia de por as mãos de petição de miséria na panela. Ela e a menina já tinham tomado, sim, ora essa. E que depois da janta o Bucco, o sabe-tudo, deveria dar uma olhada na máquina de lavar, que a bichinha já estava rateando.”
Imagem: Gansolino (Gus Goose em inglês) é um personagem de quadrinhos em forma antropomorfa de ganso criado pela Walt Disney Company. Dorminhoco e comilão, ele sofre por ter que trabalhar no sítio da Vovó Donalda.
*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.
*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.