“Quando o português chegou debaixo duma bruta chuva vestiu o índio. Que pena! Fosse uma manhã de sol o índio tinha despido o português” (Oswaldo de Andrade)
Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César conta sobre índios de Paraty, nas calçadas, a venderem seus artesanatos. Índios que César viu, mesmo com mirações, mas que, para muitos, são invísíveis.
“Em 2017, Layla, meus filhos – Francisco e Cecília – e eu fomos à cidade de Paraty para celebrar dez anos (!) de casados. Decidimos viajar para o lugar onde tínhamos passado a lua de mel em vez de, por exemplo, darmo-nos estalinhos na boca e medalhinhas de honra ao mérito com dizeres do tipo “quod patientia sit virtus” (a paciência é uma virtude).
Era época de FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty), que homenageava Lima Barreto. Papai e mamãe, sem filhos por perto, entre livros, foram passear a pé, assistir a palestras, exposições e peças de teatro. De quando em quando, emborcavam uma Heinekeinzinha para aumentar a potência das asas dos pés.
Melhor mundo não há, lhes direi! Andar a pé eu vou, que a pé não costumo faiar.
Foi ao longo dessas andanças que eu, que ando meio místico, pelo menos é assim que justifico as tonturas que tenho tido ao longo dos últimos anos, tive uma espécie de miração para Santo Daime nenhum botar defeito.
Explico-me. Há índios nesta cidade. Índios de verdade, não figurantes. Não é o Márcio Garcia vestido de Peri, não. Enquanto os turistas pagam de turistas, se deslocando para lá e para cá na tentativa, sei lá, de apreender o espírito colonial da cidade, os índios ficam à margem das ruas expondo seus badulaques como um dia costumavam expor suas vergonhas, pelo menos aos olhos dos europeus cheios de cristianismo.
Canibal não sou, que cristão me dá uma azia danada. Eu, pessoalmente, prefiro sardinha sem bispo.
Homens e mulheres índios (é preciso que se diga: apesar da invisibilidade, são homens e mulheres como a gente!) expunham seu colorido artesanato. Layla se interessou por um lindo colar coral que lhe foi oferecido por míseros vinte reais.
É assim: trocamos coisas por outras coisas, por vezes por dinheiro. Vi ou imaginei ver um homem alto e branco, pai de família, sacar uns cinquenta reais para obter das mãos da velha índia um conjunto de maracas e flautas que o filho tanto queria. Não sei se vocês, little indians, já repararam, mas a nota de cinquenta tem uma onça, que espanto, estampada.
Por uma nota de onça, compravam-se duas graciosas oncinhas de madeira que ficariam bem em qualquer estante. Entretanto, não comprei nada, nem livros, banquei o sovina. Limitei-me a me alimentar, a bater pernas à procura de restaurantes mais em conta na Off-Flip. Nada daquela mania besta de novo-rico de gourmetização! Cheguei a ver um cartaz onde se lia, “culinária contemporânea!” Que peste é esta, for God´s sake?
Na sexta, durante nossas andanças, avistamos um coral de indiozinhos. Estavam perfiladinhos, uns quatro, salvo engano, e cantavam sob o ritmo monótono de uma maraquinha. Estiquei o pescoço, como quem não quer nada, para observar o que tinha na cuia. Sim, notas de dois reais, em sua grande maioria. Eu tinha moedas na carteira, mas me recusei a dá-las.
A cena partiu meu coração como uma pedra quebra um caroço, meus cunhãs!
Não era o único grupo. Encontramos outro, mais à frente, ou mais ao lado, porque o centro histórico de Paraty é labiríntico, para não dizer que aquele calçamento de pedras irregulares faz com que marinheiro se sinta em casa tanto em terra quanto em mar; isto para não dizer que eu estava com fome e com algumas cervejas maritacas na cuca e que sou cabeça fraca, dado a devaneios.
Ri, ao perceber que colar e coral têm relação anagramática. Dali, pensei: cor coral, cócoras, decoro, coral religioso, nos indiozinhos perfilados contra o muro branco, em associações que, em breve, talvez, se esgarçariam. Por último, fiquei feliz porque, com aquelas tartarugas de dois reais, seus irmãozinhos poderiam comprar comida e roupas.
Aí a miração bateu: vejo uma árvore muito alta, troncuda, secar diante dos meus olhos até virar casca. Depois, indiozinhos chegam sentados em cima de um gafanhoto de ferro, amarelo, sem asas, de cujas presas sai uma cobra preta, viscosa, que se mistura com pó de pedra, se desenrolando em vez de dar o bote.
Saem do forno bonequinhos de barro da cor dos indiozinhos, muito brilhantes, morenos, de cabelos escorridos e de lábios grossos, que se debruçam sobre as árvores de uma floresta em miniatura.
As lágrimas vermelhas caem como se fossem da cor de olhos de guaraná, as oncinhas de madeira, articuladas, rugem, as crianças do coral me pedem “coistos”, o que eu julgo ser uma forma de dizer “biscoitos”. Eu digo que sim, com a cabeça, e tiro de uma sacola vermelha, além de biscoitos de maizena, dobrões de papel alumínio, sem valor nenhum, mas que brilham mesmo que amassados.
Vejo-me em uma canoa, fugindo do sol que queima, na posição de morto, rezando por dentro para a canoa não virar. Se ela virasse, rezaria para que eu pudesse respirar debaixo d´água, como qualquer tipo de bicho ou fera que habita as águas.
Carrego sobre o peito uma pedrinha verde da cor de uma bala de hortelã, que faz com que meu plexo solar gire como se fosse um remoinho. A pedrinha nem bonita nem feia cai na água e eu digo em pensamento aos remadores mirins e morenos para que não se preocupem, pois a pedrinha será expelida pelo buraco que o boto cinza tem na cabeça. Então, do nada, as crianças abrem as cabaças/cabeças e de lá expelem muitas pedras verdes enquanto eu morro de rir apesar dos pés dormentes.
Eles tinham me dado o nome de “Aimirim”, isto é, formiguinha. Ou seria tamanduá? Quando despertei, acresci ao nome um “P” e me vi renascido: agora eu era o Paimirim.”
Obs.: De acordo com Denis Nascimento Vilela, no texto, “Mirações daimistas: as representações imagéticas da comunidade de Cachoeira Grande – RJ”, “na cultura daimista, a miração designa as visões provocadas pela ayahuasca. É um estado de êxtase, uma experiência transcendental, cognitiva, que se manifesta sob diversas formas, em visões significativas, revelações espirituais, insights sobre o cosmos.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.