Pais e filhos por Fernanda Torres

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Por Fernanda Torres na, Folha de S. Paulo, compartilhado de Construir Resistência

No início da década de 1970, no arrocho da ditadura militar, o bairro do Jardim Botânico no Rio de Janeiro era o refúgio de artistas e intelectuais cariocas. No afã de que seus filhos usufruíssem de uma liberdade inexistente para além do portão de suas casas, essa geração de pais aderiu em peso ao ensino construtivista.




Arte: Marcelo Cipis

Eu e meu irmão, Claudio, fomos matriculados no Centro Educacional da Lagoa, uma escola pequeníssima, que prometia milagres com Piaget. Fabrízia Pinto era da mesma sala do meu irmão. No primeiro dia de aula, a molecada se apresentou com seus caderninhos encapados e os da guria causaram furor. Decorados com caricaturas dela ao lado de letras vivas, ou fugindo dos números 2 e 3, eles exibiam o traço inconfundível de Ziraldo, pai de Fabrízia e autor de uma febre chamada Flicts.

A casa Ziraldo e Wilma sempre esteve aberta, palco das festinhas de adolescência, de viradas, ensaios e contestações. O casal era próximo dos meus pais e os filhos regulavam de idade. Daniela, primogênita dos Pinto, era diferente. Metida até a orelha com o movimento estudantil, os pais acharam por bem mandá-la para Londres, onde se formou em letras e se descobriu cenógrafa.

Daniela virou lenda para os novinhos, circulando com desenvoltura pela vanguarda do primeiro mundo. Seu cenário de “All Strange Away”, de Samuel Beckett, peça dirigida pelo companheiro Gerald Thomas, no icônico teatro La MaMa de Nova York, recebeu elogios da crítica e a irmã mais velha de Fabrízia deu no NY Times.

Caçula entre os caçulas, eu jamais imaginei que trocaria meia ideia com a moça, mas a vida nos fez parceiras e irmãs de unha e carne.

Ano passado, participamos de “Ainda Estou Aqui”, filme dirigido por Walter Salles, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, sobre a história verídica de outra família progressista dos anos 1970 radicada na Cidade Maravilhosa: os Paiva. Durante os ensaios da cena em que Rubens Paiva, pai de Marcelo, é levado de casa pelos agentes do DOI-Codi, Daniela confessou estar revivendo um pesadelo de infância.

Pouco antes de Rubens ser capturado e morto, Ziraldo fora levado por gorilas da linha-dura do tão conhecido apartamento da Fonte da Saudade. Eu sabia das histórias da prisão da turma do Pasquim, mas a versão íntima da minha amiga criança era novidade.

Assim como Marcelo, Daniela acordou com homens armados na sala de casa. Ao ver o pai ser conduzido para a porta pelos brutamontes, ela se agarrou à sua perna para impedir a ação. Ziraldo a afastou, ríspido, num gesto de medo e cuidado que, para a menina, pareceu rejeição.

Na mesma época, minha mãe foi chamada para depor na Aeronáutica, mas jamais foi retirada de casa à força, como Ziraldo, ou trancafiada numa solitária, sem deixar rastro de seu paradeiro. Dona Fernanda não foi assassinada numa sessão de tortura, como Rubens Paiva, embora tenha sofrido um atentado a bala pouco antes da abertura, suspeita-se que a mando do CCC, de São Paulo.
Eu e meu irmão sabíamos bem o que era censura, mas não fomos testemunhas diretas do sadismo e da violência de Estado do regime autoritário, como os Pinto e os Paiva.

Um ano antes de “Ainda Estou Aqui”, Daniela dirigiu com Andrucha Waddington a série “Fim”, adaptação para o Globoplay do meu livro homônimo. Nas inúmeras filmagens no São João Batista, notei que ela estudava com afinco a locação, esquadrinhando as ruas e lotes do cemitério. Daniela procurava um jazigo para o pai. Ao comentar que minha família tinha por hábito cremar e jogar as cinzas ao pé de uma árvore, Daniela me respondeu, com um sorriso irônico, que aquela não era uma opção. “Ziraldo jamais me perdoaria”.

Um ano e pouco depois, ele nos deixaria.

No mesmo São João Batista do “Fim”, acompanhei o féretro de Ziraldo até uma transversal da alameda principal. O túmulo minimalista de mármore negro, de autoria da Daniela, lembrava uma escultura de Kiefer ou Rauschenberg. Dora, sobrinha neta do cartunista, puxou um “Besame Mucho” em homenagem ao amante latino, e o Menino Malucão de Caratinga, que me alfabetizou com “Flicts” e os meus filhos com o “ABZ”, foi depositado na sua última morada, sob aplausos de amigos e familiares.

Ziraldo, como meu pai, sofreu de longa moléstia e sua partida era esperada. Livre do corpo enfermo, a memória dele emergiu, com a potência de uma vida usufruída até o caroço. Ziraldo foi a alegria da resistência e, diante do seu túmulo, localizado entre os de Carmen Miranda, Santos Dumont e Tom Jobim, pensei que, talvez, seja mesmo importante ter um local simbólico para manter viva a memória de quem insiste num Brasil humano, criativo e justo.
Gente que sobreviveu às guerras quentes e frias, que parecem querer ressuscitar agora.

Foto: Bob Wolfenson

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Fernanda Torres é atriz 

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