Por Beatriz Jucá e Joana Oliveira, publicado em El País –
Artista há quase 30 anos, Paola Musatti imprime na própria trajetória a conquista feminina na palhaçaria em palcos para além dos circos tradicionais
Paola Musatti abre uma pasta de capa preta para apresentar a palhaça Manela, a quem empresta o próprio corpo há quase 30 anos. Nela, guarda documentos, encartes de espetáculos e fotos que mostram o amadurecimento de alguém que ela interpreta há décadas, mas recusa chamar de personagem. “No fundo, quem está ali é você”, explica. “O que faz você rir de você? Qual o seu ridículo que você compartilha com alguém?”, pergunta, enquanto vira as páginas e vai apontando as pequenas transformações na pele e nas roupas de sua palhaça ao longo dos anos.
O figurino masculinizado — com terno e suspensório, referências da artista em uma época que a mulher costumava ser apenas partner no picadeiro — foi substituído por vestidos e saias pela hoje integrante da Sampalhaças, um coletivo de dez mulheres artistas do riso. A boca vermelha exageradamente grande agora sequer lhe ocupa toda a superfície dos lábios, uma sugestão de um professor italiano que Paola acatou pela metade. “Você já começa a ter sua identidade, ser dona do seu trabalho. Depois de 15 anos, mudei a forma da minha boca, mas não a cor”, conta. As longas sobrancelhas pretas também foram amenizadas quando Manela adentrou no simbólico palco dos hospitais para integrar o projeto Doutores da Alegria. Hoje, ela se sente pronta.
“O espaço no hospital é mais curto. No circo, tudo tem que ser grande porque o público está mais distante”, explica. Aos 49 anos, Paola já não tem a mesma disposição de deixar que Manela faça de tudo com seu corpo na hora do espetáculo. “Começo a me sentir limitada”, ela diz, com uma voz muito tranquila. Mas o processo de construção da palhaça não estaciona nunca. A cada ano, Paola pode aprender a tocar um novo instrumento, ensaiar novas danças, mudar a própria forma de ver o mundo — e tudo é devidamente aproveitado por Manela em cena.
Ela é um dos exemplos de como a arte de fazer rir reinventou-se ao longo dos anos, afastando-se dos picadeiros para tomar as ruas —e escolas, hospitais e, basicamente, qualquer lugar onde essa arte seja bem-vinda—. Além dos Doutores da Alegria, premiados internacionalmente por levar palhaços para interagir com crianças e adolescentes e outros públicos em situação de vulnerabilidade nos hospitais públicos, essa reinvenção passa também por projetos como a Cia. do Quintal, idealizado por César Gouvea, em São Paulo, que fez o Jogando no Quintal, um jogo de futebol de palhaços que mescla técnicas teatrais e de improviso.
Criada longe das lonas tradicionais, Paola mergulhou na arte circense pelas mãos do teatro. Enquanto cursava a Escola de Arte Dramática e tinha contato com nomes conhecidos da cultura brasileira como Domingos Montagner, Matheus Naschtergaele e Dan Stulbach durante as noites, passava horas e horas do seu dia sob uma lona montada no Parque do Povo, onde funcionava o Circo-escola Picadeiro. “Fiquei apaixonada. Fui fisgada pelo mosquitinho do circo, como a gente diz”, lembra. Era início dos anos 1990. Naquela época, não havia muitos espaços para aprender a arte circense longe das lonas das famílias tradicionais. Quem queria estudar palhaçaria e tinha condições financeiras, viajava para a Europa. Mas, em São Paulo, uma turma de jovens atores misturava linguagens e desenvolvia pequenos espetáculos, cheios de referências da arte circense.
Com mais seis amigas e três amigos do teatro, Paola criou a Companhia Cênica Nau de Ícaros, que começa a causar burburinho no meio primeiro por um espetáculo realizado em uma escola da periferia e depois apresentando esquetes e peças patrocinadas por prêmios e editais. “As pessoas gostaram da gente. Éramos uma moçada nova de não tradicionais, mas que bebíamos da linguagem do circo. Um grupo com referências muito fortes do teatro”, conta. Ali, Paola fazia desde números de malabares e perna de pau até apresentações de palhaça, um ofício que ela foi priorizando na sua trajetória artística e hoje é a coluna dorsal do seu trabalho.
Foi a amiga, aliás, que a estimulou a fazer a seleção para participar do Doutores da Alegria. “A Vera dizia: você vai fazer o palhaço sem uma companhia, mas vai continuar fazendo a mesma linguagem”, conta. Paola faz o que chama de “treino da máscara”, quando Manela entra em cena, pelo menos dez horas por semana. “Tenho anos de horas de voo”, diz, usando a métrica de experiência dos pilotos de aeronaves. E acrescenta que, com tanto tempo vestida de Manela, não há como sua palhaça não crescer.
Mas adentrar esse espaço não é exatamente uma tarefa fácil, especialmente quando se é mulher. Com o circo ainda muito masculinizado, as praças públicas, os hospitais e os palcos de teatro foram virando espaços importantes para que elas conquistassem espaço na palhaçaria. Em 2013, um grupo de dez palhaças foi convidado pela Secretaria da Cultura para homenagear as palhaças em uma lona montada no Anhangabaú. “Era Dia do Palhaço, mas a gente chamava Dia da Palhaça”, conta Paola, aos risos. A emoção de dividir aquele espaço somente com mulheres acabou fazendo o grupo criar o coletivo Sampalhaças, atualmente com dez mulheres, que até hoje apresenta espetáculos e cortejos circenses em praças e teatros. “Meu grito sempre foi pela arte da palhaçaria, não pelo gênero”, diz Paola, embora os festivais de mulheres palhaças que foram se multiplicando pelo país anos antes já viessem lhe deixando pequenas pílulas de curiosidade.
Os temas tratados nas apresentações abordavam mais questões ligadas ao feminino e, mesmo nas lonas tradicionais, os assistentes de palco não pareciam preparados para lidar com mulheres. Paola observava com fascínio os movimentos corporais e as formas de pensar delas. “Mas eu e a Vera não falávamos apenas dessa questão do feminino, na verdade a gente falava da palhaçaria sendo por homem ou mulher”, diz. Em décadas de carreira, Paola viu a mulherada ocupar espaços como palhaças e plantar pequenas sementes para que os circos repensassem o espaço delas no picadeiro. Viu os grupos femininos — e até feministas, como a trupe paulista Circo di SóLadies, que se apresenta no Itaú Cultural nos dias 8 e 9 de junho— crescerem. “Nos últimos 20 anos, houve um boom de palhaças no Brasil”, resume.
A conquista de espaços é fundamental, mas o que de fato move Paola é saber que dentro dela sempre vai existir a mesma Manela criada ainda nos anos 1990, apesar das pequenas adaptações que fez na sua fisionomia. “A Manela é como qualquer um. Você pode até colocar uma flor no cabelo para uma festa ou uma touca para ir nadar, mas você continua ali. Ela amadureceu como qualquer um, mas é sempre ela”, diz. Paola também amadureceu em todo esse processo. O que permanece dentro dela é a imagem do palhaço que rompe o equilíbrio social do ser humano para expor suas fragilidades. Um ser, jamais mero personagem, que rompe as cortinas para mostrar-se vulnerável quando o espectador já leva um bom tempo vendo mágicos e acrobatas fazerem coisas impossíveis. “O palhaço é o único que mostra o humanidade dele. É o anti-herói do circo”, define.