Por Breiller Pires publicado em El País –
Ao permitir que o presidente eleito de extrema direita ofuscasse a comemoração do Campeonato Brasileiro, clube fundado por imigrantes italianos jogou contra sua história
Nas fotos do time alviverde campeão brasileiro de 2018, erguendo a taça no Allianz Parque, um personagem estranho ao futebol entrou para a posteridade embora não tenha marcado gols, dado assistências, treinado a equipe nem contratado jogadores para o clube em uma campanha praticamente impecável, sobretudo no segundo turno da competição. Jair Bolsonaro foi o grande destaque da comemoração do título. Palmeirense, mas também meio botafoguense, meio vascaíno, o presidente eleito atraiu para si holofotes que, naquele momento, deveriam se concentrar sobre atletas e comissão técnica.
Bolsonaro não é o primeiro político a utilizar o futebol como palanque de forma populista. O ex-presidente Lula recebeu comitivas de times campeões em Brasília, a exemplo de seu Corinthians, a quem beneficiou em um esforço pessoal para articular a construção da Arena em Itaquera antes da penúltima Copa do Mundo. Em 2003, o cruzeirense Aécio Neves, então governador de Minas Gerais, entregou faixas e uma taça simbólica ao elenco campeão brasileiro no Mineirão. Hoje, a participação de um deles em celebração de título de seus clubes seria contestada por boa parte dos torcedores, já que atualmente ambos estão mais atrelados a denúncias de corrupção que à imagem dos cargos executivos que ocuparam na política.
De qualquer maneira, a associação entre Bolsonaro e Palmeiras é singular. Pela primeira vez, um presidente da República eleito – ainda que não empossado – entrou em campo, posou com os jogadores para a foto oficial e, mesmo com movimentos limitados pela bolsa de colostomia, deu a volta olímpica exibindo o troféu. O convite para entregar a taça partiu da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mas sua presença no estádio foi fruto de iniciativa da diretoria palmeirense, que ficou impressionada com o engajamento de suas postagens alusivas ao clube nas redes sociais e decidiu surfar na onda de popularidade do célebre torcedor. Mais uma vez, é expediente típico de dirigentes, sejam eles de clubes ou federações, bajular o poder em busca de prestígio por tabela ou benesses como as angariadas por Andrés Sanchez, presidente do Corinthians, nos tempos de proximidade com Lula.
No entanto, algo inquestionável em Bolsonaro é o senso de oportunidade. Se o Palmeiras pretendia se colar na repercussão dos atos que envolvem o presidente eleito, o objeto da reverência foi além e roubou a cena, inclusive de responsáveis diretos pelo decacampeonato que o apoiam abertamente, como Felipe Melo e Felipão. O técnico que deu a volta por cima depois de sucumbir no 7 a 1, emplacando uma invencibilidade de 22 jogos, bateu continência ao avistar o militar reformado na entrada dos vestiários. Ainda que o cumprimento de Scolari seja visto apenas como gesto cordial, de respeito, já que o treinador também encontrou-se com Dilma Rousseff e Lula na época em que comandava a seleção e o Chelsea, seus feitos notáveis à frente do Palmeiras acabaram em segundo plano diante de uma atuação performática de Bolsonaro, tão à vontade como um astro da bola no gramado do Allianz, distribuindo poses para os fotógrafos e fazendo o famoso sinal da arminha com os dedos para delírio de parte da torcida que o idolatra.
Outra parte, em menor número, vaiou a aparição do presidente, logo sufocada por gritos de “mito, mito, mito”. O oportunismo das duas partes, clube e político, se revelou pouco edificante para o Palmeiras. Provocou a cisão entre seus torcedores, ainda no calor da campanha eleitoral, e se viu como coadjuvante da própria festa. O mais grave, porém, é o flagrante acinte à história da entidade no festival de deferências a Bolsonaro. Fundado por italianos, um clube que foi perseguido durante a Segunda Guerra Mundial, obrigado a abrir mão do nome Palestra Itália e vítima de campanha difamatória que o associava ao fascismo, jamais poderia servir de palco para o exibicionismo de um líder de extrema direita que se refere a imigrantes e refugiados como “a escória do mundo”.
Em várias ocasiões, Bolsonaro não hesitou em tornar públicos seus discursos de conotação xenofóbica. Além das menções desonrosas a haitianos, sírios e bolivianos, prometeu limitar a entrada de venezuelanos que fogem da crise humanitária na nação vizinha, alegando que o Brasil, formado por culturas, etnias e nacionalidades diversas, “não pode ser um país de fronteiras abertas”. Se estivesse na ativa durante o estabelecimento da colônia italiana em São Paulo, o presidente ultradireitista provavelmente combateria os fundadores do clube que lhe estendeu o tapete verde em sua casa. Dizer que Bolsonaro é incapaz de espalhar xenofobia por ter ascendência italiana faz parte da mesma narrativa que nega o racismo em suas falas pelo fato de ter amigos negros, uma das tantas que tentam naturalizar comportamentos extremistas de um político sem precedentes na democracia brasileira.
Um clube fundado por italianos jamais poderia servir de palco para o exibicionismo de um líder de extrema direita que se refere a imigrantes e refugiados como “a escória do mundo”
No afã de se curvar ao futuro presidente, o Palmeiras volta a dar as costas às minorias que já tinha afastado de seu estádio ao estabelecer uma política de preços excludente e se omitir das violências sofridas por torcedores que só podem fazer festa do lado de fora. Enquanto Bolsonaro ainda recebia afagos dentro do Allianz Parque, a Polícia Militar agia de forma truculenta para reprimir a comemoração da torcida nas ruas. Desfecho emblemático para uma solenidade do futebol que teve como protagonistas no centro do campo um político militar e seu aliado Major Olímpio, ex-oficial da PM e senador eleito em São Paulo pelo PSL, ambos defensores da “licença para matar” para policiais.
Ao acatar a sugestão da CBF e servir de escada para Bolsonaro brilhar na festa do título, o Palmeiras, acima de tudo, deu as costas a seu passado, tal qual o Vasco, que, apesar de ter sido fundado por portugueses e reconhecido pelo caráter democrático de suas origens, homenageou no início do ano o Coronel Nunes, cartola que serviu à ditadura militar. A tradição de resistência palestrina não merecia que o clube se rebaixasse a um papel de subserviência ao poder. Conquistas dentro do campo deveriam ter o mesmo peso que o respeito à própria história. Instituição acima de todos.