Guilherme N. de Lacerda, economista, ex-diretor do BNDES e Perly Cipriano, ex-secretário da Justiça do Espírito Santo e membro do Diretório Estadual do PT(ES)*
O trágico momento que a humanidade enfrenta diante de uma pandemia de tamanhas proporções coloca reflexões que precisam ser levadas muito a sério. Vivemos um momento que é um divisor de águas. Nada será como antes.
Os vícios sociais e os comportamentos egocêntricos retornarão. Mas, está renovada a constatação da insignificância humana e dos riscos existentes no desbravamento da natureza. Esta marca interferirá na organização social de todos os países daqui por diante.
O desafio colocado para os governantes diante da complexidade da situação é muito grande. O êxito das ações de enfrentamento depende fundamentalmente de uma sintonia com a sociedade civil. A coesão social é determinante para se superar esta guerra travada contra um agente invisível e poderosíssimo na destruição de vidas.
Todo o arcabouço militar convencional e os mais sofisticados arsenais desenvolvidos pelos complexos industriais bélicos são inúteis nesta batalha. Os principais aliados para a superação da ameaça são o entrosamento entre sociedade e governantes e o apoio deliberado para os centros de pesquisa trabalharem e encontrarem alternativas seguras para debelar a pandemia.
Mas, infelizmente, por aqui não é isso que se constata. O país enfrenta um dos mais delicados momentos de sua história profundamente fragmentado. A atitude do principal mandatário incita posturas belicosas.
Os governadores e prefeitos dialogam, juntam-se com lideranças políticas e comunitárias, ouvem os técnicos e se esforçam para construir caminhos que atenuem o sofrimento social. As suas atitudes revelam a importância do “fazer política com responsabilidade”, na busca de soluções dos problemas econômicos e sociais com respaldo cientifico.
Contudo, falta uma peça central para ajustar as posições dos governantes. O discurso pequeno do principal mandatário do país em torno de uma suposta solução medicinal de uma substância, o incômodo com a dedicação e o destaque da equipe ministerial e o menosprezo com a realidade, demonstrado de forma agressiva em vários momentos, joga a sociedade nacional num clima de profunda insegurança e humilha nosso país perante o mundo. Esta situação leva ao que o historiador inglês Erick Hobsbawn chamou de “a era da insensatez”.
A sociedade precisa reagir e apoiar os esforços das equipes médicas, sob orientação das decisões tomadas pelos governadores e prefeitos que são, de fato, os dirigentes responsáveis pelas gestões de prevenção e assistência médica.
Neste momento, o mais importante para o país é a união de esforços para ampliar a proteção das pessoas. Está consagrada de uma vez por todas a importância de um sistema público de saúde. A falta de cobertura assistencial para os mais pobres rebaterá na capacidade de atendimento de toda a população. Enganam-se aqueles que julgam não precisarem do SUS.
A sociedade brasileira é muito heterogênea. A abissal desigualdade de condições de vida interfere na sociabilidade e coloca a nu as fragilidades de nosso desenvolvimento contemporâneo.
Ocorre que, desta vez, a crise que se enfrenta estabelece ameaças concretas para a proteção social de toda a população; é impossível segregar os extratos sociais de menor renda dos demais, caso contrário o processo de geração de valor e de funcionamento dos sistemas econômicos não se realiza a contento.
Diante deste cenário convivem, lado a lado, gestos grandiosos de dedicação social e zelo para atenuar sofrimentos, com atitudes repugnantes de outros que não captam a dimensão da nova realidade instalada no planeta.
Alguns chegaram a classificar a ajuda de renda aprovada pelo legislativo como um ônus para o Estado, a quem não caberia “dar esmolas…”; uma visão minúscula da essência e papel do governo de uma verdadeira Nação.
Por outro lado, de todos os cantos chegam notícias de reações da sociedade na busca de soluções para atenuar o sofrimento de grupos sociais de maior risco e de menor capacidade de enfrentamento.
Estas iniciativas atenuam sofrimentos e ajudam no esforço dos profissionais de saúde, que são a última brigada de esperança para os indivíduos indefesos.
Neste cenário, era de se esperar que esta catástrofe fosse um catalizador para quebrar tensionamentos políticos e ideológicos e permitisse uma interlocução mais amena entre os diversos grupos políticos e os governantes. Mas não é o que está acontecendo.
O que o país mais precisa neste momento é de sensatez, de coesão. Nós, brasileiros, deveríamos estar ouvindo um discurso uníssono na preparação para uma jornada de sacrifícios que será longa. O que se espera de lideranças nacionais neste momento é uma atuação firme com um foco estratégico para reorganizar o país e enfrentar os novos tempos.
Está comprovado que não se pode renunciar a se produzir internamente os bens e estruturas necessárias à saúde e bem-estar de toda a população. O apoio à ciência e aos grupos de pesquisa foi colocado como um item de quinta categoria nos orçamentos públicos nos últimos anos.
As universidades e centros de pesquisa (como a Fiocruz) passaram a ser alvos de agressão gratuita, desconsiderando sua importância no desenvolvimento tecnológico. Os nascentes grupos industriais de diversos produtos e equipamentos associados à saúde foram deixados à míngua, num entendimento limitado de que o mercado por si só resolve. Para que se preocupar se podemos produzir grãos e proteínas e comprar mais barato tudo que precisamos, de uma agulha de injeção a um tomógrafo? A fatura por esta estupidez chegou logo.
Agora, buscamos de forma desesperada a aquisição de um leque de medicamentos e instrumentos para a atuação dos profissionais de saúde. E é doloroso constatar que dentre os itens buscados há vários que poderiam estar sendo produzidos internamente.
Glorifica-se um modelo econômico de vantagens comparativas ultrapassado. E soma-se a ele uma política econômica assentada em um inalcançável orçamento equilibrado como sendo a pedra filosofal para o país chegar a um desejável desenvolvimento. Uma receita falsa, apenas aparentemente correta, que, em nenhum canto e em nenhum tempo foi utilizada com êxito.
Enfim, as dificuldades atuais para enfrentar esta inusitada realidade mundial só serão superadas com uma reversão da visão fiscalista torpe hoje prevalecente e com o estabelecimento de uma interlocução respeitosa dos grupos dirigentes com a sociedade brasileira.
Imagem: Aroeira