Por Luísa Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora –
Sem a estrutura das ricas fazendas de soja e algodão da região, pequenos produtores rurais mudam rotinas e buscam alternativas para garantir sustento
A vida de Marilene Santos da Silva, 38, mudou. Filha de feirantes também agricultores, o burburinho da grande movimentação de pessoas entre barracas cheias de verduras e frutas esteve na sua rotina desde os sete anos, quando começou a frequentar a feira livre de Santana – município do oeste da Bahia, a 831 quilômetros de Salvador – acompanhando sua família, até 18 de março, data em que a feira foi suspensa. Marilene, que seguiu a profissão dos pais, nunca imaginou que esse ambiente tão familiar passaria por alterações drásticas em pouco tempo. Com a pandemia da covid-19, ela deixou de montar sua barraca e agora tem que lidar com os novos modelos de comercialização, a perda de produtos e o medo de contaminação pela doença.
Histórias como a de Marilene se repetem nos municípios do país em que as feiras livres constituem parte importante da economia local, situados sobretudo no interior. São nos estandes montados nesses espaços que muitos pequenos produtores rurais comercializam o que plantam e produzem. No entanto, a aglomeração e o contato constante em pessoas e nas mercadorias expostas, que fazem parte da dinâmica das feiras, as tornaram praticamente incompatíveis com esse momento de pandemia.
No oeste da Bahia, região a quase mil quilômetros da capital, Salvador, e marcada pela forte presença do agronegócio, Santana, São Desidério e Correntina são municípios com grande atividade da agricultura familiar – as feiras fazem parte da tradição dessas cidades.O primeiro caso de covid-19 no Oeste Baiano foi confirmado em 23 de março, em Barreiras, sua maior cidade. De acordo com dados da Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab), até julho, 3.293 pessoas foram contaminadas na região – 33 morreram.
Santana, de 26 mil habitantes, foi a primeira a adotar a suspensão da feira, em 18 de março. “O prefeito conversou com os feirantes numa reunião e entramos em acordo: concordamos que seria melhor suspender. Tínhamos receio principalmente das pessoas que estavam chegando de lugares afetados, porque elas iriam logo para a feira caso estivesse funcionando”, conta Cleide Costa, 36 anos, presidente da Associação dos Feirantes de Santana (Afeisan). Antes da pandemia, o sábado pela manhã era o momento da feira livre ter maior movimento, com 300 feirantes com barracas armadas. Para a prefeitura, a suspensão das feiras está sendo importante para prevenir a circulação do vírus e ainda não há uma previsão para a reabertura: o município só registrou 15 casos até 14/08.
Para que as mercadorias continuassem a ser comercializadas, a Afeisan organizou, em parceria com a Secretaria de Agricultura, um serviço de entrega. Nas redes sociais, são divulgados cards com o contato dos produtores e informações sobre o que vendem. Os fregueses fazem seus pedidos através do whatsapp e recebem os produtos em casa. Cerca de 40 feirantes estão fazendo vendas pelo servio de entrega. Cleide acredita que esse seja o melhor modo de trabalhar no presente. “É mais sadio e causa menos aglomeração”, afirma a presidente da associação.
No entanto, outros feirantes encontraram meios diferentes. Marilene Santos começou no modelo de entrega, mas decidiu posteriormente alugar um ponto comercial, que funciona apenas pela manhã. Moradora da comunidade rural do Brejinho, ela explica que o delivery é melhor para os produtores que moram próximos à sede do município. Para os moradores da zona rural, o serviço de entregas é mais complicado, sobretudo por conta da distância ao centro e do sinal telefônico mais fraco. “Com o ponto, há maior viabilidade. E eu consigo também trabalhar a pronto entrega. Se pedem uma porção, tem como eu imediatamente atender. Não preciso esperar juntar vários pedidos para vir à cidade e entregar”, explica Marilene.
Em São Desidério, com 33 mil moradores, o cenário é um pouco diferente, mas a parceria entre o associativismo e a prefeitura também foi uma solução para que não houvesse tanto prejuízo. Na cidade, onde já foram confirmados mais de 260 casos de coronavírus e um óbito pela doença, a feira tradicional foi interrompida entre 21 de março e dois de maio. Durante esse período, a comercialização também passou a ser feita através do modelo de delivery, com pedidos realizados pelo whatsapp, ideia surgida na Associação de Agricultores Rurais de Samambaia, comunidade de São Desidério com número expressivo de feirantes da agricultura familiar,.
Janete dos Santos, 40, feirante desde os 20 anos, planta hortaliças. Ela faz parte da associação e integrou o grupo que começou a realizar entregas durante essa pausa do funcionamento. Com outros feirantes, levava seus produtos para um galpão organizado pela Secretaria de Agricultura na sede da cidade onde faziam as vendas. “A gente vinha para a sede por causa do sinal melhor”, explica. “Eu pegava a minha mercadoria e a de alguns colegas, que não podiam vir ao Centro, e colocava na lista de produtos disponíveis. No sábado, a gente ia para esse espaço e, conforme os clientes iam pedindo, a gente entregava as hortaliças”, conta Janete.
Em maio, a feira retornou ao funcionamento. Secretária municipal de Agricultura de São Desidério, Patricia Rocha garante que o processo seguiu todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). “A equipe da Secretaria foi orientar as pessoas sobre o uso de máscara e o distanciamento. Fizemos esse trabalho durante quatro feiras. Afastamos barracas e orientamos. Agora eles estão tocando sozinhos”, disse.
No entanto, apesar do retorno, a feira não é a mesma: São Desidério registrou, até o 15 de agosto, 418 casos confirmados de covid-19, com dois óbitos. Janete dos Santos, que voltou a expor suas verduras e legumes, observa que os espaços vazios estão maiores, não só por conta do distanciamento das barracas, mas também devido à ausência de muitas delas. “As pessoas não estão vindo. Não está o mesmo movimento de antes. Não dá nem para comparar”, afirma a agricultora. Os consumidores preferem continuar fazendo pedidos à domicílio. Por conta disso, ela mantém as entregas.“Quando voltei, muitos me ligaram perguntando se eu ia continuar com o delivery. Então continuo entregando até sexta e, no sábado, vou para a feira”, conta.
Em São Desidério, além da feira tradicional, com maior participação da agricultura familiar aos sábados pela manhã, há também a feira Luar do Cerrado, voltada à gastronomia e ao artesanato. A “feirinha”, como é chamada carinhosamente pelos são-desiderianos, funcionava nas primeiras quartas-feiras de cada mês e está suspensa desde abril sem previsão de retorno. Ainda que ocorresse apenas mensalmente, movimentava a cidade e tinha uma grande presença de consumidores. Por isso, era dela que muitos feirantes tiravam uma parte significativa de seu sustento.
Almiraise dos Santos, 37, foi uma das pessoas afetadas por essa interrupção. Autônoma, ela fazia queijo, manteiga e requeijão para vender na Luar do Cerrado. A pandemia interferiu bastante em sua renda. “Está difícil para mim. Antes eu vendia bem, agora não estou conseguindo ganhar nem 2.000 reais por mês.” Ela parou de produzir laticínios porque não houve procura e, por isso, deixou de comprar leite com a vizinha, que também acabou tendo a renda afetada. Agora, está fazendo lanche e vendendo em casa. Por morar em uma comunidade rural, Penedo, ela afirmar ser inviável o serviço de entrega
Em Correntina, município com 32 mil habitantes, há várias feiras: a mais tradicional, com mais de 250 pontos fixos e grande quantidade de produtores rurais movimentando as manhãs de sábado; a da Agricultura Familiar, que reúne cerca de 320 expositores às quartas de noite; e outras em comunidades e distritos mais distantes da sede do município.Todas foram suspensas, exceto a feira tradicional, que sofreu mudanças – o funcionamento passou a ser de segunda a sexta-feira, de forma a reduzir o fluxo de pessoas que ficava concentrado no sábado. O funcionamento da feira só foi suspenso entre os dias 11 e 21 de julho, quando grande parte do comércio fechou as portas por decreto da prefeitura. O município registrou até sábado, 15/08, 150 casos de covid-19.
Neta, como é conhecida a lavradora e feirante Luzinete Souza,43, já comercializava muitas de suas verduras pelo modelo de entrega a domicílio antes do coronavírus. Ela vendia tanto na Feira da Agricultura Familiar de Correntina como na tradicional, mas ainda assim sobravam produtos para vender. Com a pandemia, o serviço de entregas está sendo seu único meio de comercializar os quiabos e pimentões que planta. “Acho que não adiantou nada suspender a feira do sábado. Todo mundo passou a ir na sexta. Não estou indo por decisão própria. Prefiro o delivery”, desabafa.
No distrito de São Manoel, a Feira Noturna, que acontecia às quartas, está interrompida desde março. Era um evento importante não apenas por ser a fonte de renda de muitos produtores rurais, mas, também, como ponto de lazer para os moradores. “No início foi horrível. Quando houve a suspensão, os feirantes ficaram todos perdidos”, relata Gisele Magalhães, 39, professora no distrito e uma das idealizadoras da feira em 2016. A solução também foi o delivery, executado pela Associação de Produtores Rurais de São Manoel. Eles se organizaram para que cada entrega acontecesse em um dia específico. “Cada um entrega em dias e horários diferentes. Por exemplo, o produtor do alface entrega pela manhã e à tarde vai quem vende banana. Os consumidores sabem o momento exato em que o feirante passa e ficam esperando na porta de casa com o dinheiro trocado”, descreve Gisele.
Hannes Tavares, diretor das feiras na sede do município de Correntina, afirma que foram feitas orientações sobre o uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento pela equipe da Secretaria de Agricultura para que a feira tradicional continuasse acontecendo. “Não houve rodízio antes, mas, após o dia 21, estipulamos para cada região o transporte em um dias distintos. Criamos essa estratégia por comunidades próximas para limitar a vinda dos feirantes. Aí, por exemplo, na segunda vem uma região, na terça, outra…”, explica Hannes.
“Nós também somos linha de frente”
Apesar de muitos feirantes terem encontrado alternativas, a situação dos agricultores ainda é difícil. “A gente compreende a suspensão, mas fica à deriva. Estamos de pés e mãos atados”, confessa Marilene. Ela prefere que a feira de Santana não seja reaberta, mas reconhece que as dificuldades aumentaram
Paulo Baqueiro, professor do departamento de Geografia na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), observa que em situações como esta fica ainda mais evidente a importância da agricultura familiar. “Há uma ideia de que o agronegócio é o vetor de progresso da região. Mas, na verdade, é a agricultura familiar que coloca comida na mesa das pessoas, gera emprego e renda”, afirma.
A perda de produtos é uma reclamação constante em todos os feirantes e o serviço de entrega tem seus problemas Mas eles não podem parar. “Nós também somos linha de frente. Se não produzirmos, como o produto vai chegar na mesa das pessoas? Como o consumidor vai se alimentar? A gente não pode parar a produção e temos que encontrar um jeito viável de levar o alimento a quem precisa”, afirma Marilene.
Neta plantava de tudo um pouco em Correntina dependendo da época do ano, mas precisou diminuir a variedade de verduras. “Tive que deixar de plantar. Muitas coisas passaram a perder porque só pela entrega não sai. Isso vem trazendo muitos transtornos. A venda e a renda caíram bastante”, conta. Janete, mesmo após a volta da feira de São Desidério, também teve grandes perdas. “Se você não colher a hortaliça em duas semanas, ela perde todinha. Tenho dificuldade de vender porque as pessoas não vão”, lamenta.
A entrega a domicílio também não é uma unanimidade. De acordo com Hannes, não houve uma parceria entre os feirantes e a prefeitura de Correntina para a organização da entrega por conta da dificuldade de execução desse modelo. “O nosso grande problema com o delivery é que ele nem sempre funciona bem. Aqui, tem comunidades que ficam a mais de 40 quilômetros da sede. Não vale a pena para as pessoas virem trazer só dois pés de alface”, fala. “Muitos agricultores não têm Whastapp e na zona rural nem sempre há sinal de telefone, acesso à internet. Como a gente vai colocar um serviço de entrega se não tem como fazer o contato?”, ele completa.
Essa foi uma dificuldade presenciada também por Janete. Não foram todos os feirantes da Associação de Agricultores Rurais de Samambaia que participaram do serviço de entrega. “Das 16 pessoas da associação, só eu e mais quatro quisemos entregar”, ela conta e acredita que a o sinal telefônico instável na zona rural seja o principal motivo.
Além disso, nenhum dos feirantes estava preparado para os novos gastos surgidos com a pandemia. “Na feira, o custo era baixíssimo”, diz Marilene, citando que o necessário se resumia à estrutura da barraca, o transporte de sua casa ao centro de Santana e e sacolinhas de embalagem para algumas verduras.“Quem optou pelo ponto, agora tem aluguel, água, energia. Uma porrada de gastos extras”. Gisele observa que, para os feirantes do distrito de São Manoel, em Correntina, houve um aumento de despesas por conta do combustível e dos novos itens imprescindíveis: o álcool e as máscaras. Aumentou, também, o trabalho. “Os produtores ficavam em seu próprio espaço esperando os fregueses. Agora precisam se deslocar para fazer a entrega. É cansativo e tem custo maior”, diz.
Cleide também está mais cansada. Feirante há 16 anos, ela diz que nunca trabalhou tanto. “Antes, eu trabalhava meio período. Agora é o dia todo. As pessoas ligam pedindo: “ah, eu queria um milho pra comer hoje de noite”. Porque agora que eu entrego tem essa possibilidade”, relata. Nem todos conseguem realizar o serviço de entregas ou alugar pontos. A presidente da associação conta que recebe queixas de outros feirantes que deixaram de plantar por não conseguirem se adequar a nenhum dos dois modelos. Alguns deles receberam apoio de comerciantes, que cederam espaços de seus mercados para a venda dos produtores rurais.
Hannes relata o depoimento que escutou de um agricultor de Correntina. “Assim que começou a falar, ele começou a chorar muito porque parou de produzir e não sabe como vai fazer para comprar as coisas para dentro de casa”, conta. Mesmo que a feira esteja funcionando durante os dias de semana na cidade, muitos feirantes não vão. Têm medo. Principalmente os mais velhos, que em sua maioria fazem parte de grupos de risco. Neta está entre os que preferem não se arriscar. “Os casos estão aumentando na região e algumas pessoas não seguem os protocolos necessários”, lamenta. “Muita gente tem medo de ir porque não temos suporte para saúde. Preferimos perder o alimento do que arriscar nossas vidas”.
Cleide diz que, em Santana, há feirantes que não fazem entregas nem alugam pontos por conta do receio de contaminação. “Tem gente vivendo apenas do auxílio emergencial. Gente que não tem um salário, mas prefere não fazer nada disso.” Janete continua participando da feira de São Desidério, no entanto, vive apreensiva: “Não me sinto segura, mas é o meu meio de sobrevivência”.
Outras soluções
Os cenários são distintos e alguns estão conseguindo se virar melhor do que outros. Mas a solidariedade é uma constante. Neta, sempre que pode, enche sacolas com verduras e dá para os vizinhos em dificuldades. Cleide vende junto com seus produtos os legumes de feirantes que não estão conseguindo fazer entregas.
Para os feirantes de Santana e São Desidério, apesar das grande perdas, a assistência das prefeituras está sendo um facilitador para atravessar o momento. Em Santana, foram disponibilizados 20 pontos para os feirantes durante este período. Já em São Desidério a prefeitura está comprando mensalmente uma parte do produto dos lavradores para a distribuição de cestas básicas. Para os comerciantes da feira Luar do Cerrado, um auxílio de 400 reais é dado àqueles que não têm renda fixa, como Almiraise, desde abril.
Outro suporte é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e por governos municipais. O PAA compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e os destina a entidades socioassistenciais e a instituições públicas, como Centros de Referências de Assistência Social (CRAS) e hospitais. Marilene, de Santana, e Janete, de São Desidério, estão entre os produtores que participam do programa. Ambas concordam que, ainda de a quantidade de produtos vendidos ao programa não seja muito grande, o dinheiro recebido dá maior tranquilidade aos lavradores.
As feiras não se resumem a compra e venda. Paulo Baqueiro analisa que o impacto desse momento na vida das pessoas que costumam frequentá-las vai além do financeiro. “Muitas coletividades estão sendo afetadas. A feira tem um impacto cultural forte. É espaço de encontros e de trocas não só econômicas. As pessoas iam para bater papo, para renovar seu arsenal de informações”. Ele reforça que o isolamento é a principal estratégia para a redução de danos no presente, mas alerta para as consequências sociais da pandemia: “ [A ausência das feiras] é uma forma de isolar olhares e visões de mundo porque as pessoas não estão mais se encontrando nesses espaços”, afirma.
Marilene está com saudade. “A feira também era um lugar de afeto.” Ela lembra que encontrava todo mundo no sábado pela manhã e diz que sente muita falta disso. Gisele ressalta a importância do espaço para a distração. “É o único lazer que a gente tem. Não tínhamos nada além disso. A vida de São Manoel perpassa pela feira. Sem ela, o lugar muda. Nem parece o mesmo.” Almiraise também sente muita falta. A feira Luar do Cerrado, que ela descreve com entusiasmo como “maravilinda”, era uma de seus principais diversões. “Acho que o retorno da feirinha vai bombar! Não vejo a hora”, anseia aos risos.