Pantanal, cenário que a vida real desbotou

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Entre as duas versões da novela, bioma perdeu muito – e mesmo assim, a luta ambiental é coadjuvante de terceiro escalão na versão do folhetim produzida pela Globo

Compartilhado de Projeto Colabora




Pantanal em 1990 (à esquerda) e em 2020: muito menos água. Imagens MapBiomas
Pantanal em 1990 (à esquerda) e em 2020: muito menos água. Imagens MapBiomas

A chalana avança lentamente pelo rio, emoldurada pelo verde das matas e o céu de azul impecável. Com status de personagem da trama, o cenário ostenta belezas e mantém certo ineditismo, na mídia excessivamente concentrada nas metrópoles do Sudeste. Tempera o folhetim com encantados que encarnam em onças e sucuris, o sotaque peculiar, as modas de viola, as atividades exóticas ao olhar urbano. Mas a vida real, vilã incansável, só faz desbotá-lo.

O Pantanal da Globo, exibido três décadas depois da versão original, na Manchete, desfila esmaecido na tela da TV. O YouTube está aí para provar, com seu farto acervo pirata: a região documentada na antediluviana tecnologia Betamax, na trama de 1990, dá goleada de opulência nos registros do HD atual. A realidade das queimadas e da devastação de árvores e rios virou protagonista invencível.

Na época da primeira versão, apenas 4% do bioma haviam sido destruídos; agora, desapareceram 25%, especialmente depois das queimadas no desgoverno Bolsonaro. As imagens de satélite do projeto MapBiomas, que mapeia as mudanças no uso do solo no Brasil, são contundentes como último capítulo de novela: a média histórica da área de inundação no Pantanal diminuiu 26% nos últimos 30 anos. Está menos exuberante e mais seco do que 32 anos atrás.

A prometida atualização temática, com a inclusão do necessário clamor ecológico, é acanhada coadjuvante de terceiro escalão. Aparece, sobretudo, em personagem surrealista: o latifundiário que se angustia com o meio ambiente, os animais, as tradições. José Leôncio (Marcos Palmeira) recusa-se a explorar o garimpo, proíbe abate de bichos a tiros e queimadas em suas pastagens. Ainda tem consciência social – deixou a família retirante de Maria Marruá (Juliana Alves) viver numa tapera na sua fazenda e até criar um pequeno rebanho, sem qualquer ônus. Se ele fosse para o Congresso liderar a bancada ruralista, o Brasil estaria salvo.

A sensibilidade do pecuarista se replica em seu herdeiro caçula, Jove (Jesuíta Batista), destinado a administrar o império do pai – outras cinco fazendas espalhadas por três regiões brasileiras. Com jeito de cirandeiro da Praça São Salvador, ele ensaia uma revolução na gestão da empresa, mesmo com a oposição de Davi, o engravatado malvadão que só pensa em lucro.

Jove (à esquerda) e Zé Leôncio: o cirandeiro e o latifundiário com consciência ambiental. Foto divulgação/TV Globo
Jove (à esquerda) e Zé Leôncio: o cirandeiro e o latifundiário com consciência ambiental. Foto divulgação/TV Globo

Mas o amado de Juma Marruá (Alanis Guillen) não vai muito além. Desfia platitudes como “temos que respeitar a natureza”, “os bichos chegaram antes de nós” e fala superficialmente nos lucros de manter a floresta em pé. Até agora, só foi mais fundo sobre a situação do bioma. “É um paraíso com os dias contados. Não sou eu que estou dizendo, não. São as águas dos rios cada dia mais turvas. Pelo que estão fazendo rio acima. Derrubando tudo, botando lavoura em tudo que é canto, tacando fogo nas matas”, listou, em conversa com Tadeu (José Loreto), seu irmão.

Prevista para terminar em 14 de outubro, com 173 capítulos, a novela, além da metade, teve o grande momento de denúncia da destruição na noite de 28 de junho. O Velho do Rio (Osmar Prado) encantou-se em sucuri e por pouco não morreu numa queimada impressionante. A Globo se permitiu exibir imagens pesadas (e reais, captadas nos incêndios em 2021) de animais incinerados pela ação humana e de brigadistas tentando – em vão – debelar as chamas. Mais adiante, está prevista a morte de Roberto (Cauê Campos), filho do vilão Tenório (Murilo Benício), no contexto da luta pela preservação.

Fica nisso. Agora, surgiu Érica (Marcela Fetter), jornalista com estilo de surfista que fotografa muito, apura pouco e viaja sem rumo pelo Pantanal, misturando fascínio e tristeza, pelos relatos da destruição. De novo, o tema não prospera. Quando chega na fazenda de Zé Leôncio, a coleguinha revela que nem sabe qual reportagem fará. (Se precisar, o #Colabora tem excelentes editores para cuidar desse material. O free-lancer é pago dia 5 do mês seguinte, mas a Beth entra em contato antes, para pedir a nota.)

Escrita originalmente por Benedito Ruy Barbosa (inacreditavelmente engavetada pela Globo, até ser produzida pela Manchete) e atualizada pelo neto do autor, Bruno Luperi, “Pantanal” está devendo na luta pelo meio ambiente. Como numa novela, o mistério do engajamento quase envergonhado tem solução – está, na verdade, nos intervalos, naquele infame comercial “Agro é pop, agro é tech, agro é tudo”, que a emissora faz questão de assinar junto, com um explícito “tá na Globo”. Nele, mora, tragicamente, a vida real, personagem principal da destruição do planeta.

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