E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, trabalhou na versão de uma poema inglês. Oferecemos o poema pelo Dia Internacional do Trabalhador e da Trabalhadora, Primeiro de Maio.
Eis uma versão de “Song of men of England”, do poeta romântico inglês Percy Bercy Shelley (1792-1822). O poema é relativamente simples em sua estrutura. Muito provavelmente foi escrito desta maneira para que alcançasse seus destinatários, os trabalhadores ingleses do início do século XIX.
Assim como sua sintaxe, suas imagens são claras. Mais do que das imagens da forja, do arado e do fiar, imagens do mundo do trabalho pré-industrial. Eu particularmente gostei da comparação entre os trabalhadores e as abelhas. A fábrica como uma colmeia, altamente setorizada e tal, mas também com uma relação de interdependência.
A mensagem nos remete às ideias de Marx, aquele comunista que não era padre. Posso a traduzir assim: “Se são os trabalhadores que tudo produzem, toda a produção deveria ser repartida entre a gente”. É a tal da luta de classes, pessoal, que existe, que está aí desde que o mundo é um moinho.
Como sabemos, entretanto, muita água suja tem passado por debaixo da ponte. Tanto é assim que hoje assistimos a trabalhadores, tais como motoristas de aplicativo, se achando donos de seu próprio negócio, sendo ludibriados a estabelecer metas irreais: “Tenho que fazer cinquenta reais por hora”; “Hoje entendo que tempo é dinheiro!”, entre outras coisas. Quantas vezes ouvi isso no Uber?
Temos perdido o olhar que contempla o todo? Como gostaria de passar para eles o filme do Ken Loach: “Você não estava aqui”. Mas acho que eu não escaparia de levar umas cinco estrelas no cocuruto. Eles não acreditam em mim.
Sobre a tradução, um grande problema é a economia da língua inglesa. O que Shelley diz em cinco pares de fortes e fracas com seus monossílabos, eu só consigo dizer com sete a oito pares. Se eu enxugasse os versos, eu perderia o efeito “you-oriented” (o poema fala a todo instante: “Você ou Vocês”, em inglês não há distinção entre o singular e o plural dos pronomes) do poema original.
Ficou boa a versão? Não sei. Tomei inúmeras liberdades poéticas, como é o caso do sintagma “à sombra” no quarto verso da segunda estrofe, que não existe no verso original. Quis reforçar a ideia de que muita gente trabalha sob o sol a pino para que gente que não trabalha viva de sombra e água fresca no bem bom. Tradutor, traidor. Enfim, vamos ao poema.
CANÇÃO OPERÁRIA
O que se planta na terra
Só serve aos donos dela?
O que se tece com jeito
Só serve aos ricos sujeitos?
Vista, guarde, engorde
Do berço até a cova
Os ingratos que irão
Beber seu sangue à sombra
Abelhas nas oficinas
Forjamos armas ferinas
Com as quais os sem-ferrão
Nos ferram o coração
Você tem lazer, conforto e calma
Abrigo, comida e amor na alma?
Ou do que se tem você paga o devido
Com a dor e o temor vividos?
O grão você planta, outro colhe
A riqueza você produz, outro engole
Os robes você fia, outro se veste
As armas você faz, a outro se presta
Plante o grão que o tirano não ponha a mão
Produza riqueza que não leve nenhum ladrão
Fie robes que nenhum insolente vista
Faça armas na defesa de sua conquista
Em cavas, covas e celas você dormita
No que você construiu alguém habita
Pra quê chacoalhar os grilhões? Você vê
O aço que você temperou refletir a sua tez
Com arado e espada e enxada e tear
Trace o seu risco e construa seu morar
E teça o sudário do operário até que
Este país não possa mais deixar de ver você
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.