Para aderir à OCDE, Bolsonaro mente sobre combate ao trabalho forçado

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Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.

Por Jamil Chade, compartilhado da sua Coluna




Quatro elementos podem definir o trabalho escravo contemporâneo: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva - Sérgio Carvalho/Ministério do Trabalho

Na esperança de convencer a OCDE que está alinhado com os critérios da entidade, o governo de Jair Bolsonaro omitiu os cortes de orçamento para programa de inspeção do trabalho ao apresentar seus compromissos sobre a área trabalhista. Em seu lugar, o governo listou programas criados para supostamente lidar com o fenômeno, sem dar dados de seu impacto e nem os resultados.

Uma das prioridades do governo Bolsonaro na política externa é a adesão à OCDE, uma espécie de clube dos países ricos. Mas o ingresso de um país não depende apenas de uma decisão política. Para que seja aceito, o governo terá de provar que leis nacionais e as práticas de política pública atendem aos critérios da instituição com sede em Paris.

Colunistas do UOL

Nesse aspecto, os padrões trabalhistas são considerados como um dos critérios principais que a OCDE estabeleceu para aceitar a adesão de um país e, no processo de exame da candidatura brasileira, o tema será alvo de escrutínio.

No final de setembro, o governo submeteu à entidade mais de 1,1 mil páginas para demonstrar que suas leis nacionais e os programas do governo estavam em linha com os compromissos, acordos, protocolos e padrões estabelecidos pela OCDE em dezenas de temas.

Mas o governo, sem dar explicações, optou por manter o documento em sigilo, causando amplo protesto por parte da sociedade civil.

Nos últimos dias, o UOL mostrou com exclusividade como o governo escondeu, no documento, a existência de um orçamento secreto e mentiu sobre a situação ambiental no país. Agora, a reportagem revela que as distorções também são amplas no que se refere às pautas sociais.

Procurado pela reportagem todos os dias desde segunda-feira, o Itamaraty não prestou esclarecimentos e não explicou o motivo pelo qual o documento está sendo mantido em sigilo.

O que disse o governo?

No informe, o governo de Bolsonaro informa para a OCDE que, em 2022, “lançou um programa para orientar trabalhadores e empregadores no cumprimento da legislação, regulamentos e normas trabalhistas, incluindo a segurança e saúde ocupacional”. “O Programa de Trabalho Sustentável busca, entre outros objetivos, erradicar o trabalho infantil e o trabalho forçado, além de combater a discriminação e promover a igualdade de oportunidades no trabalho”, disse.

O governo também diz que “está em funcionamento, sob a responsabilidade da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho da Secretaria do Trabalho (SIT), um Grupo de Trabalho para a Promoção do Trabalho Decente nas Cadeias de Abastecimento, formado por auditores-fiscais do trabalho, cujo objetivo é realizar estudos e a coleta de experiências sobre o tema, que por sua vez servem como subsídios para a formulação de políticas públicas relacionadas ao assunto”.

O governo ainda declarou para a OCDE que, numa de suas medidas, “não haverá tolerância para aquelas (cadeias de abastecimento)” em relação a “quaisquer formas de trabalho forçado ou compulsório”.

“Um dos objetivos do Ministério do Trabalho é a erradicação do trabalho forçado e das condições degradantes de trabalho. A inspeção do trabalho visa a formalização dos trabalhadores liberados do trabalho forçado, bem como soluções adequadas e eficazes, tais como a compensação”, diz o informe.

Segundo o governo, a pasta possui “um sistema específico de denúncia de trabalho forçado, chamado “Sistema Ipê” e um Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil – “Radar SIT”, com uma área exclusiva para trabalho forçado e tráfico de pessoas”.

“Com relação ao trabalho infantil, o Ministério do Trabalho promove ações de inspeção do trabalho para combatê-lo, conscientiza o público sobre os danos causados pelo trabalho prematuro, assim como articula ações com outras entidades da rede de proteção a inclusão de adolescentes que deixam o trabalho infantil em programas de proteção social e em programas de aprendizagem”, completa.

O texto ainda cita um decreto de 2019 que promulgou convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho, principalmente sobre a abolição do trabalho forçado, sobre a Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil, entre outras.

Dados e sociedade civil desmentem governo

A lista de ações apresentada pelo governo para a OCDE, porém, é questionada por especialistas e pela sociedade civil.

De acordo com a Conectas Direitos Humanos, o documento “exorta o papel do Ministério do Trabalho e, principalmente, da Secretaria de Inspeção do Trabalho na promoção e fiscalização de todos os pontos importantes que adentra, como igualdade de salários, redução do trabalho infantil e escravo”.

“No entanto, não informa que o orçamento da inspeção do trabalho vem sendo cada vez mais reduzido”, diz.

Segundo eles, a verba autorizada para “Fiscalização de Obrigações Trabalhistas e Inspeção em Segurança e Saúde no Trabalho” sofreu uma redução de mais 50% entre 2019 e 2022, passando de R$ 68,2 milhões para R$ 30,4 milhões.

“A falta de recursos tem impacto direto no número de operações fiscais realizadas, mas também atingem outras áreas do órgão, como ações de prevenção, conscientização e processamento interno de denúncias”, declarou.

Segundo a Conectas, as equipes do Ministério do Trabalho e Previdência de Minas Gerais – um dos estados que mais realiza inspeções trabalhistas – estão hoje com suas atividades paralisadas por falta de verba.

Numa outra avaliação, a entidade destaca que, nos últimos dez anos, o número de auditores fiscais passou de 2.935 fiscais em 2010 para apenas 2.050 em 2020.

“Chama a atenção no relatório brasileiro à OCDE a omissão ou distorção de pontos-chaves de degradação da governança socioambiental brasileira, sobretudo no que se refere a direitos indígenas, proteção a defensores de direitos humanos e ambientais ou mesmo proteção aos trabalhadores”, disse Júlia Neiva, coordenadora do Programa de Defesa dos Direitos Socioambientais, Conectas Direitos Humanos.

Segundo ela, a reforma trabalhista suprimiu mais de 200 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, enfraqueceu sindicatos e permitiu aos empregadores terceirizar 100% de sua força de trabalho. “Além disso, houve uma redução de um terço nos últimos dez anos do número de fiscais do trabalho e cortes consideráveis em programas de combate à escravidão contemporânea”, alertou.

Para a especialista, é “imprescindível que a sociedade civil seja escutada pela OCDE no que diz respeito às políticas de direitos humanos no Brasil para que um eventual ingresso do país ao órgão leve em consideração a implementação de políticas que respeitem o alto nível de governança exigido e se reverta em um ambiente de paz e prosperidade para sua população”.

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