Para além do bem e do mal

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista

Ao que tudo indica, gente que dormiu nas aulas de história (Revolução Francesa, Revolução Russa e as duas últimas guerras mundiais em particular), literatura e introdução à filosofia (lógica aristotélica) amanheceu o dia surpresa e indignada pelo que chamam de “ato de barbárie russa” pela invasão da Ucrânia, ex-componente, entre 1922 e 1991, da União Soviética de que a Rússia foi núcleo e centro de gravidade.




Irritados, por não se conformarem com o fato de acontecimentos históricos não se ajustarem às concepções simplórias e simplistas que cultivam (características elementares do fascismo), circulam pelas mídias sociais de porrete em punho dispostas a descarregar a fúria da impotência.

Eu, que não tenho a menor intenção de atirar pérola aos porcos, recorro à estratégia elementar da anulação pelo recurso do bloqueio com um único clique. Mas, por natureza e encantamento com a humanidade (apesar de tudo aparentemente em contrário) tenho necessidade de atirar quixotescamente ao solo sementes de suposta lucidez e, mais que isso, recolher e absorver reflexões mais promissoras que as parcas que cultivo na qualidade de jardineiro determinado.

Com isso me permito à liberdade de perguntar: estão surpresos com o quê? E por que? Ainda que eu mesmo tenha sugerido a resposta no parágrafo anterior. De George Steiner (1929-2020) crítico literário e professor de literatura leio em “Aqueles que Queimam Livros” que “os déspotas não amam e a ‘fortiori’ (expressão que se refere a um argumento com o que se tira a conclusão mais clara, partindo do que era menos evidente) não lançam desafios e nem aceitam contestações”.

Nos dois extremos do confronto que assusta incautos, defensores de teses primárias como “isso não vai acontecer” (quando, em princípio, tudo pode acontecer) temos dois déspotas ou defensores de despotismos domésticos em choque. Um não é melhor nem pior que o outro e assim o que cabe discutir é, no contexto em consideração, quem tem ao menos alguma parcela de razão e quem pouca ou nenhuma, o que nos leva de volta à dificuldade de discernimento dos que dormiram pesado nas aulas de história.

Ao final da Segunda Guerra Mundial e mais especificamente com a dissolução da União Soviética em 1991, os Estados Unidos se arvoraram, e esgrimem isso o tempo todo, no papel de xerifes planetários. Supostamente, ao menos na visão deles e de seus “aliados”, (seus subalternos planetários) com o direito de intervirem onde desejarem da forma que considerarem mais apropriada.

No caso russo, agindo com astúcia de salteadores na madrugada, criaram e tentam consolidar uma rede de ataque com o propósito de atingir o coração da Rússia, com seus mais de 17 milhões de km² e um dos mais amplos e diversos bancos de recursos naturais da Terra, incluindo energia fóssil: gás e petróleo.

O retorno do neoliberalismo em meados dos anos 1980, por iniciativa de Thatcher e Reagan (até então ator de faroestes de segunda categoria) pôs fim a um estado de bem-estar social na Europa deflagrado e estimulado por um projeto destinado a impermeabilizar a infiltração comunista, ao menos da Europa, porque o restante do chamado Terceiro Mundo nunca esteve no mapa.

Esse retorno do neoliberalismo, na essência uma forma predadora/desumanizadora de relações humanas que uma dada produção de conhecimento científico (vide Francis Bacon, o pai do método científico) teria tudo para deixar confinado ao passado, intensificou a ganância e desejo de expansão cobrindo toda a esfera da Terra. Confinar a Rússia seria e foi (ao menos em tentativa) uma forma de executar essa estratégia.

Com a falha de, aqui para recorrermos a Mané Garrincha, filósofo da bola de pernas tortas, se esqueceram de “combinar com os russos”. Assim, a reação anunciada e repetida ao longo deste ano por Wladimir Putin, o novo czar russo, seria óbvia por falta completa de alternativa. Se aceitasse o confinamento, e Putin repetiu à exaustão que não faria isso, seria o fim do jogo e ele certamente estaria ameaçado de prisão acusado de algo como “crime contra a humanidade”.

Os Bush, pai e filho, fizeram o que bem entenderam. Obama, com suas guerras e justiçamentos arbitrários, arrebatou o Prêmio Nobel da Paz e tudo parecia como antes no Reino de Abranches.

Para que não fique uma impressão de tábula rasa, certamente é preciso lembrar, ao menos para quem cultiva a reflexão, que os Estados Unidos são uma sociedade complexa e não necessariamente monolítica, como, em essência, nenhum desses arranjos humanos é e isso é o bastante para sugerir reações internas contra o que ocorre em escala global. De outro lado, a literatura russa está permeada de guerras, e, na vastidão das estepes, os corpos humanos trazem as marcas desses confrontos, com campos adubados com carne humana.

Por que pensar que neste momento, quando está sob ameaça potencial de destruição, essa gente de muitas maneiras amantes da guerra, que paradoxalmente sempre odiaram, permaneceriam inertes?

Que os desinformados retirem a ferrugem dos neurônios lendo, entre outros, Tolstoi em “Guerra e Paz”, relato majestoso e dramático das campanhas napoleônicas na Rússia. Se desejarem algo mais recente e direto aqui vão duas sugestões: “A Morte do Homem Soviético”, da Prêmio Nobel de Literatura de 2015, a russa Svetlana Aleksiévitch e “Sovietistão” da antropóloga e jornalista norueguesa Erika Fatland que traça um perfil fascinante de alguns antigos membros da então União Soviética. Uma reflexão necessária para “Além do bem e do mal”, agora, num tributo a Nietzsche.

Imagem DW. População ucraniana foge da guerra que tomou forma de realidade.

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