Por Vitor Nuzzi, compartilhado de RBA –
Compositor se emociona ao lembrar de Zuzu Angel, amiga assassinada pela ditadura em 1976, e diz que o país está “com um pé no fascismo”
São Paulo – Histórias da estilista Zuzu Angel, dos tempos da ditadura e do atual momento político emocionaram Chico Buarque e Hildegard Angel em conversa na tarde desta quinta-feira (10). A jornalista Regina Zappa reuniu os dois no programa Estação Sabiá, na TV 247, para lembrar de Zuzu, que teria completado 100 anos no último dia 5. Ela foi morta em 1976, em acidente simulado, depois de incomodar o governo por anos, atrás de respostas sobre o paradeiro do filho Stuart Angel Jones, também assassinado pelo regime. Assim, as lembranças daquele tempo remeteram à violência cotidiana de agora.
Chico, inclusive, mostrou-se especialmente preocupado com o que pode acontecer no país, ao falar da impunidade de ontem, que levou à de hoje. “Todo mundo sabia que o Bolsonaro era a favor da tortura, que o Mourão era a favor, e o Ustra era o herói deles. As coisas vão continuando. Evidentemente, é uma consequência.” O cantor e compositor também vê riscos reais de censura à livre circulação de ideias, citando especificamente sites “de esquerda, de oposição ao governo”. “A gente sabe que estão preparando um golpe”, afirmou. “Além da autorização que tem lá de cima para continuar a haver um morticínio.”
“Não há mais civilização”
Já no final da live, de pouco mais de uma hora, Chico mostrou indignação. Citou o episódio de uma deputada de Minas Gerais que denunciou a morte da jovem Kathlen Romeu, no Rio, e por causa disso foi atacada por colegas parlamentares.
“Não há a menor compaixão, entende? É um fim de linha. Não há civilização mais que resista. Então, eu fico torcendo, primeiro, pra cair esse homem, de uma vez, pra parar de morrer tanta gente, e pra ver se é possível reeducar as nossas polícias e ver como estão se formando esses oficiais do Exército. Porque esses oficiais que estão no poder hoje foram criados pela ditadura passada. Então, imagina o que está criando hoje nas academias. (…) Um general moleque dá um soco na mesa, a República treme. A gente está sujeito a esse tipo de coisa. Não pode mais. (…) No Uruguai, na Argentina, no Chile, isso não aconteceria. Eles não voltariam assim com essa desfaçatez, achando que são donos deste país. Não são donos porra nenhuma. Não são nada.”
Chico citou ainda o marechal Henrique Teixeira Lott, candidato à presidência em 1960 e voz da legalidade dentro das Forças Armadas, como exemplo de dignidade no meio militar. Com isso, mais uma vez, lamentou o momento atual. “Isso parece que sumiu, ou então baixaram a cabeça e são voto vencido lá dentro das Forças Armadas”, afirmou. “Porque a gente não vê uma manifestação de dignidade por parte de algum oficial do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica (…). Não há vergonha.”
Um bilhete: vão me matar
Logo na início da conversa, Chico Buarque se emocionou, parando para enxugar lágrimas, ao lembrar de sua relação com Zuzu Angel, que ele definiu como “misteriosa”. Disse que a estilista não era uma mater dolorosa, mas “alegre, agitada”. Recordou que Zuzu dava camisetinhas para suas filhas com a atriz Marieta Severo. Quando Stuart Angel foi morto, Zuzu aproveitou sua condição de estilista e sua proximidade com a elite social para divulgar o episódio, inclusive nos Estados Unidos – seu marido era norte-americano.
Um ano antes da morte da estilista, Chico recebeu um bilhete de Zuzu dizendo que, se ela morresse, os responsáveis seriam os mesmos que haviam matado seu filho. Denunciou isso repetidamente, mas esbarrava na censura. “Era enlouquecedor. Você falava, falava, falava, e não saía em lugar nenhum.”
“Ninguém falou nada”
Depois do atentado disfarçado de “acidente” automobilístico que matou Zuzu Angel, em abril de 1976, Chico Buarque lembrou do bilhete e conversou com o escritor Paulo Pontes, com quem trabalhava na época (escreveram juntos a peça Gota d´Água). Pontes sugeriu procurar Zuenir Ventura, que Chico não conhecia. Decidiram distribuir cópias dos bilhetes. Tiveram o cuidado de fazer as cópias longe do Rio, na região serrana. Foram distribuídas 100, para deputados e jornalistas. “Ninguém falou nada”, lembra Chico, para quem seria necessário existir “outra Zuzu” para denunciar o que aconteceu com Zuzu.
Posteriormente, já com a instalação da Comissão Nacional da Verdade, foi comprovada a responsabilidade de agentes do Estado na operação que levou à morte da estilista. A União, inclusive, foi condenada a pagar danos morais à família.
Uma música para sempre
A jornalista Hildegard acredita que sua mãe fez uma espécie de “transferência” de Stuart para o artista, “talvez por tudo o que o Chico significava, por músico da resistência, naquele momento, e também pelo afeto de disponibilizar o seu tempo, o seus ouvidos, sua casa, a escutar aquela mulher desesperada. E também aquela música que eternizou…”, disse, também se emocionando. Em 1977, Chico pôs letra em uma melodia de Miltinho, do MPB-4, criando assim a canção Angélica, que fala de Zuzu e do filho, cujo corpo nunca foi encontrado. A canção só foi incluída no álbum Almanaque, de 1981.
“Quem não viveu a ditadura, ou quem viveu a ditadura se abstraindo, não imagina o que era isso. “Em casa, nós vivíamos sob permanente toque de silêncio. (…) “Não se podia falar sobre isso.” Ela se recorda que a mãe falava enquanto dormia, sempre chamando o filho pelo apelido familiar: “Tuty, Tuty, Tuty”. “Isso era a noite inteira. Mas de manhã ela acordava, colocava um disco… (…) A vida era musicada. Tinha essa mistura. Não era uma casa infeliz, era uma casa reprimida pelo momento. Mas nós tínhamos aquela alegria da mamãe, aquela roupas coloridas com pássaros, que nos alimentava também.”
Personificação do incômodo
Para Hildegard, mesmo com a percepção de que o filho tinha de fato morrido, Zuzu quis manter o que ela chamou de “performance da busca”, porque seria uma forma de sensibilizar e chamar a atenção para o que estava acontecendo no Brasil. Assim, ela se aproximou inclusive de mulheres de militares de alta patente. “E o Chico tem razão, achavam que ela era louca. Ela era inconvenientemente louca, a personificação do incômodo. Mas sabia também que tinha de estar próxima dessa burguesia, da alta sociedade, que era uma maneira de agregar poder a ela.” Assim, conta Hildegard, sua mãe chegou a mandar, por exemplo, coroa de flores para o mausoléu do filho do general Silvio Frota, militar da chamada linha dura.
Chico também recordou do episódio em que o brigadeiro João Paulo Burnier pretendia explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, algo que provocaria muitas vítimas, para atribuir o atentado à esquerda e assim dar condições para mais ações repressivas. Mas outros militares desarticularam o plano, como o capitão Sérgio Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A ele, anos depois, Chico dedicaria a música Capitão.
“Já estamos com um pé no fascismo”, disse. “E ele (Bolsonaro) anunciando isso (golpe) o tempo todo. Algum pretexto vai ser usado para fecharem de vez. É real, a gente corre esse risco.”