Por Washington Luiz Araújo, jornalista para o blog Tire as Mãos do Meu Pé Sujo –
Muito Além das Garrafas
Já pertenci a uma tribo. A nossa aldeia ficava numa praça e um bar era a nossa oca.
Sentados em volta de uma mesa, a vida era celebrada. O cacique, que era o dono do bar, chamava-se Carlito e tinha um poder especial para unir as mais diversas tribos à sua volta.
Neste verdadeiro conselho tribal, vivemos e vencemos várias batalhas.
Batalhas que faziam parte de tantas guerras que nem nós sabíamos precisar quantas.
Guerras de consciência e de gerações, conflitos políticos e econômicos. Este último item, então, era uma batalha constante, pois nossos bolsos estavam quase sempre vazios.
Mas, o Carlito sempre dava um jeito de pendurarmos nossas continhas (modéstia minha). Não era por isso que sairíamos sóbrios.
Na falta de um adversário, às vezes, brigávamos, verbalmente entre nós mesmos. Discutíamos por tudo.
Desconfio até que alguns discordavam de opiniões só para dormir com mais um discussão no currículo. Nos bons tempos, o Carlito fechava o bar, mas ninguém saía. Aí a coisa partia para a conspiração e as confidências giravam entre cúmplices.
A coisa ia até quatro, cinco horas da manhã, no máximo. Afinal, os compromissos nos esperavam. E sem compromissos como iríamos abater nossas contas, que muitas vezes mais pareciam prontuário de bandido famoso?
Mesmo sabendo que desta oca jamais sairíamos sem tomar uma e muitas outras, de vez em quando pagávamos a dolorosa. Fazer o quê? O Carlito tinha que sustentar sua família.
Amigos iam, amigos vinham, mas era batata encontrar sempre alguém para bater um papinho e tomar uma gelada tirada da Jandira (apelido que o Carlito deu ao freezer).
Se a casa estivesse freqüentada por um desafeto, a solução era quebrar o gelo e conversar com o mesmo e quebrar o gelo. Quantos amigos cultivamos desta forma…
E tinha o Carlito, espanhol que chegou ao Brasil com 12 anos para nunca mais voltar. Ficou também algo de seu sotaque. Só isso, pois o idioma espanhol esqueceu.Não deixava de falar cervessa, por exemplo.
Homem de bom humor, tirador de sarro, perdia o cliente, mas não a oportunidade de fazer uma brincadeira.
Dono de ótimo coração, apesar das duas pontes de safena, o Carlito ouvia todas as conversas ao seu redor. Às vezes, de acordo com a amizade, intervinha para acrescentar alguma tiradas bem humorada ou para dar uma “gossadinha” de nossa cara.
Dos 36 anos de existência do bar, o Carlito nos aguentou, pelo menos, 20.
E num reduto democrático, como todo boteco que se preza, falávamos de tudo e de todos, inclusive do próprio dono.
Pois é, já pertenci a uma tribo, onde nossos programas de índio eram feitos ou planejados na oca do Bar do Carlito.
Depois, um mudou, outro casou, outro morreu e o bar foi se esvaziando.
Ir lá, só para ficar nostálgico. Alguns resistentes ainda frequentavam. Eu, traidor, fiquei com um pé numa canoa e outro em várias. Reconheço.
Percebi isso no dia em que paguei minha quase eterna contas. Paguei, não abati como fazia há anos e não abri outra. Lá se foi um péssimo, mas delicioso hábito. Querem coisa mais gostosa do que beber, comer, conversar e depois virar as costas e tchau, Carlitos?
Carlito, nunca me despedi de você. Não o fiz por ter a certeza de que você sempre está atrás do balcão, como nos velhos tempos. Na minha memória, pelo menos, você é eterno.
Saudades até de quando você nos expulsava, vendo as horas sumirem com nossos goles de cervejas.
Como quando você fingia não ter ouvido que era a saideira e, mesmo reclamando, colocava outra e mais outra, outra, outra….
O nosso Carlito foi para o balcão da eternidade em 1996, mas sempre estará ao nosso lado pelos bares da vida.
O co-editotor deste blog, Américo Vermelho, não gosta de textos grandes, mas vai entender os motivos que levaram o seu confrade a publicar este com tantas letras de nostalgia.