Por Ligia Guimarães, compartilhado de BBC News Brasil em São Paulo –
Vizinhos separados pela distância de um muro, os bairros de Paraisópolis e Morumbi, na zona Sul de São Paulo, mostram realidades muito díspares quando se analisa as estatísticas de cada um.
Em 2018, por exemplo, a idade média ao morrer dos moradores de Paraisópolis, que fica no distrito da Vila Andrade, na zona Sul de São Paulo, foi de 63,55 anos.
Comparado ao bairro do Morumbi, a diferença é de uma década a mais de vida: 73,48 anos, conforme apontam os indicadores do Mapa da Desigualdade, compilado pela Rede Nossa São Paulo, organização da sociedade civil voltada à formulação de políticas públicas mais inclusivas.
O indicador foi criado pela Rede Nossa São Paulo a partir de dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde, referentes aos óbitos que ocorreram em cada ano. É calculado a partir da soma de todas idades ao morrer em cada bairro, dividida pelo número total de óbitos registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.
No sábado, Paraisópolis foi palco de uma tragédia: nove jovens morreram durante uma ação da Polícia Militar no Baile da 17, ou Dz7, uma festa de funk que costuma reunir milhares de pessoas. Muitas vindas de outras regiões da periferia da cidade, como eram também as vítimas.
A emblemática desigualdade entre os dois bairros, no entanto, não é incomum – segue um padrão recorrente observado na cidade de São Paulo. Na lista de bairros do Mapa da Desigualdade, as regiões mais ricas, no centro expandido, lideram com as médias de idade mais altas ao morrer. Já entre as mortes mais prematuras, todos os piores indicadores são, sem exceção, de bairros de periferia.
No ano passado, os cinco bairros com idade média mais alta ao morrer foram Moema (80,57 anos), Jardim Paulista (79,85 anos), Consolação (79,43), Alto de Pinheiros (79,09) e Itaim Bibi (78,67). Já os cinco com idade média de óbito mais baixa foram Anhanguera (58,87), São Rafael (58,75), Grajaú (58,64), Marsilac (57,51) e Cidade Tiradentes (57).
Jorge Abrahão, coordenador da Rede Nossa São Paulo, explica que a principal causa para tamanha diferença é a morte de jovens, muito mais frequente nas periferias.
“Nesse item, seguramente o que mais pesa é a morte de jovens. Temos uma quantidade muito grande de mortalidade de jovens nos bairros mais vulneráveis, nas periferias.”
Abandonos múltiplos e baixa qualidade de vida
Embora os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) usados no mapa não detalhem a causa de morte de cada jovem, o coordenador vê na explicação uma mistura de efeitos de uma série de abandonos do poder público em relação à qualidade de vida nessas regiões mais afastadas do centro.
“Indicadores que mostram uma má qualidade de vida e, somado a outros, abaixa muito. Um ambiente desfavorável.”
Desfazendo uma confusão comum na análise sempre que esse indicador é divulgado, Abrahão pontua que a idade média ao morrer entre bairros é bem diferente do indicador “expectativa de vida”, que é uma estimativa projetada do número médio de anos que a população de um local (ou um recorte dessa população) deve viver, caso sejam mantidas as mesmas condições de vida vivenciadas no momento do nascimento.
“Eu acho que esse indicador [da idade ao morrer] é dos que mais retrata as diversas dimensões da desigualdade. São muitos indicadores que mostram como a desigualdade é cumulativa na nossa cidade. É uma desigualdade de renda, mas vai muito além disso. É uma desigualdade de serviços de saúde, educação, de saneamento, de segurança”.
Na Vila Andrade, o índice de mortalidade infantil é parecido com o do Morumbi: 8,62 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas de mães residentes no distrito da região de Paraisópolis, ante 7,59 no Morumbi. Na cidade, a maior proporção de mortalidade infantil é observada em Marsilac: 24,59 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas. A menor é registrada em Perdizes, 1,07.
O distrito onde fica Paraisópolis também fica em primeiro lugar em toda a cidade com o maior tempo de espera para matricular uma criança na creche.
A região de Paraisópolis é campeã em tempo de espera quando o assunto é marcar uma consulta com um clínico geral: 75 dias. Já no rico bairro vizinho do Morumbi, que fica literalmente do outro lado do muro que o separa da favela, a espera é de apenas 1 dia. A média de espera do município de São Paulo é de 19 dias.
A Vila Andrade, distrito em que está localizada a comunidade de Paraisópolis, é a região da cidade que concentra o maior percentual de favelas da cidade: 49,15% dos domicílios do distrito estão em favelas, ocupações irregulares ou assentamentos informais, sem nenhuma segurança jurídica. No vizinho Morumbi, essa proporção é de 16,59%.
Em Moema, onde a vida média foi mais longa no ano passado, a proporção de pretos e pardos é também a menor entre todos os bairros de São Paulo: 5,82%.
Juventude negra perdida
Estimativas do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum de Segurança Pública apontam que as mortes violentas de jovens custaram ao Brasil cerca de 1,5% do PIB nacional em 2010.
Dados da edição de 2018 do estudo apontam que uma das principais facetas da desigualdade racial no Brasil é a forte concentração de homicídios na população negra.
“É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, diz o documento, coordenado pelo pesquisador do Ipea, Daniel Cerqueira.
Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%; no mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. “Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras.
Para Abrahão, reduzir um nível tão gritante de desigualdade passa por ampliar e priorizar o orçamento para as áreas mais necessitadas.
“Esses dados deviam servir pra gente distribuir o orçamento de maneira desigual. O orçamento devia ser desigual para combater a desigualdade”.
A recomendação do Atlas da Violência, em sua edição de 2019, é similar à da Rede Nossa São Paulo.
“Constatamos a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no país, ainda que reconheçamos que esse processo se manifesta de formas distintas, caracterizando cenários estaduais e regionais muito diversos sobre o mesmo fenômeno. Portanto, fica evidente a necessidade de que políticas públicas de segurança e garantia de direitos devam, necessariamente, levar em conta tais diversidades, para que possam melhor focalizar seu público-alvo, de forma a promover mais segurança aos grupos mais vulneráveis.”