Por Rodrigo de Almeida no Poder 360, publicado em Jornal GGN –
Então fica combinado assim: quando os malfeitos mencionados por delatores são dos outros, atiremos pedras com o rigor implacável de defesa da moralidade. Quando os citados somos nós, alto lá –convém separar o joio do trigo. “Nós”, no caso, é o PSDB. “Os outros”? O PT, em especial. Ou o que dizer da nota do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, segundo a qual a imprensa prestou um “mau serviço” ao país ao “ser usada por quem não é criterioso”?
O delator não criterioso a que FHC se refere é Benedito Júnior, o BJ, o ex-presidente da Odebrecht Infraestrutura. Em depoimento ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na semana passada, BJ afirmou que a empreiteira doou R$ 9 milhões em caixa 2 para campanhas eleitorais tucanas e citou o senador mineiro Aécio Neves como arrecadador das contribuições. Em sua nota em defesa do colega tucano, FHC lembra haver “diferença entre quem recebeu recursos de caixa 2” e quem “obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção”.
O ex-presidente tem razão. De fato, o modelo no qual se assenta o direito brasileiro prevê punições distintas para crimes distintos. Quanto mais grave o delito, maior sua punição. No fundo, vale o princípio adotado desde o reino da Babilônia, em 1780 a.C.: lex talionis, a lei de talião, a rigorosa reciprocidade do crime e da pena –o olho por olho, dente por dente, a retaliação proporcional ao mal causado, a correspondência exata entre o delito e o castigo imposto a quem o cometeu. (Eis uma das razões porque é falsa a platitude espalhada muitas vezes nas ruas –e em parte da imprensa–, a de que “crime é crime e ponto final”.
Mas, como escreveu o mordaz Bernardo Mello Franco no jornal Folha de S.Paulo, “nada como um dia após o outro”. O colunista se referia a dois momentos sublimes da nota do ex-presidente: primeiro, a de que a palavra de delator não é prova; segundo, quando FHC reclamou da imprensa.
Acrescento outra lembrança à convicção de que muita coisa muda um dia depois do outro. Vejam o que pensava FHC em setembro de 2012, no momento de julgamento do que se convencionou chamar de mensalão, em declaração ao repórter Luís Eduardo Gomes:
“O absurdo maior no mensalão é considerar como caixa 2, como se caixa 2 não fosse crime. Como se fosse normal. ‘Ah não, foi só caixa 2’. O que é isso? Caixa 2 é o uso do poder econômico por baixo dos panos para afetar o resultado de eleição. É grave.”
O ex-presidente se mostrava ali inconformado com o argumento usado pela defesa dos réus do julgamento do mensalão, de “reduzir as denúncias a ‘caixa 2’”.
Tudo muda, claro, quando o assunto atinge o próprio umbigo –digo, partido. O mal é sempre do outro, nunca o meu. A demência imoral dos outros é sempre mais danosa e criminosa do que a minha. Em termos práticos: delatores só são confiáveis quando citam os “outros”. Se BJ cita Aécio pedindo caixa 2, então o que vale é o depoimento de Marcelo Odebrecht, que “só se recorda de doações oficiais para tucanos”. A nosso favor, são úteis. Contra “nós”, não passam de “não criteriosos”. Com o ataque sistemático aos “outros”, a imprensa presta seu serviço ao país; um desserviço quando a vidraça está em “nós”.
(Convém lembrar que, enquanto denuncia os malfeitos dos outros, os processos das maracutaias ocorridas sob as asas do PSDB estão parados há uma década.)
FHC leu a cética obra “Around the Cragged Hill”, do cientista político e historiador norte-americano George Kennan. Leu e concorda com o diagnóstico de professor de Princeton morto em 2005: tanto em regimes totalitários quanto em regimes democráticos, há duas inevitabilidades. Primeiro, forma-se um círculo de poder que faz do governo não uma coisa agradável, mas necessária; segundo, o governo distorce as personalidades pela vaidade e pelo egoísmo.
Foi a vaidade, o egoísmo e o oportunismo que levaram à difusão da máxima para o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff: o poder está podre e é conduzido pelo PT; logo, tiremos o PT do poder e as coisas se resolverão. Depois se viu que outros partidos, inclusive o PSDB, parecem ter se banhado na generosa cachoeira de dinheiro das empreiteiras.
É a vaidade, o egoísmo e o oportunismo que transforma muitos dos porta-vozes da moralidade e dos bons costumes em versões atuais e apequenadas de Girolamo Savonarola, o jovem dominicano citado por Maquiavel que se lutou ardorosamente contra a corrupção dos Médici, na Florença do Renascimento. Savonarola acabou morto na fogueira, depois de ser atraído pelo corrupto e libertino papa Alexandre 6º, o Borgia. Com suas barbeiragens e regras flexíveis de moralidade, o PSDB corre o risco de ser morto na fogueira de 2018.
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Rodrigo de Almeida, 41, é jornalista e cientista político. Graduado em jornalismo pela UFC (Universidade Federal do Ceará), é doutor em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj. Foi pesquisador do Neic (Núcleo de Estudos do Empresariado, Instituições e Capitalismo). Na imprensa, foi diretor de jornalismo do iG e editor-executivo do Jornal do Brasil, entre outros cargos. Foi assessor de imprensa do ministério da Fazenda (gestão de Joaquim Levy) e secretário de Imprensa da Presidência da República, nos últimos meses do governo de Dilma Rousseff. Atua como editor-executivo da editora LeYa Brasil. Escreveu, entre outros livros, “À sombra do poder: bastidores da crise que derrubou Dilma Rousseff”, publicado pela LeYa em 2016.