Para superar o capitalismo, sistema de morte

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Por Mauro Lopes, com imagem de Emil Nolde, Publicado em Outras Palavras – 

Novos ensaios em “Outras Palavras”: informado pela Teologia da Libertação e pensamento do papa Francisco, colunista escreve sobre grandes impasses contemporâneos. No primeiro texto, o papel dos bancos e da aristocracia financeira

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Escrevo hoje e nos próximos dias uma breve série de meditações sobre o capitalismo a partir do ensinamento da Igreja e do Papa Francisco, que no II Encontro dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), em julho de 2015, qualificou o sistema de “ditadura sutil”. Para o Papa, o capitalismo “é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…” Antes, em abril, um dos líderes da reforma da Igreja, o cardeal de Tegucigalpa, Óscar Andrés Rodriguez Maradiaga, ex-presidente da Cáritas mundial e coordenador do grupo encarregado da reforma da Cúria romana, havia afirmado que o capitalismo é “um sistema econômico que mata”. Não são ensaios nem artigos, apenas breves meditações que buscam colocar-se a serviço da Igreja, que busca retomar o caminho original dos ensinamentos de Jesus.




I – Os bancos

Minha nova atividade profissional fez-me frequentar um ambiente no qual não pisava há quase vinte anos: as filas de agências bancárias. O que tenho testemunhado é um verdadeiro massacre. Toda vez que alguém chega para fazer um pagamento ou retirar dinheiro ou qualquer outra operação nos caixas dos grandes bancos e seu cartão é inserido nas maquininhas, abre-se uma tela para o funcionário do banco com as informações necessárias para espoliar a pessoa. Os velhos e velhas aposentados são as vítimas preferenciais. Os bancos tentam arrancar seu dinheiro sem dó nem piedade, aproveitando-se do fato de estes aposentados terem uma renda mensal garantida. Nos caixas, jovens bem falantes, articulados e obrigados à “venda”, sob o risco de não “atingirem as metas” e, no limite, serem demitidos por isso. É um sistema infernal. Outro dia minha mulher testemunhou um velhinho quase aceitando um crédito de 40 mil reais diante da insistência do caixa: “O senhor não está precisando trocar de carro? Tem aqui 40 mil, podemos fazer já. O senhor usa e paga um pouquinho por mês”. Ela quase se meteu para impedir o assalto, mas a ultima hora o senhor recusou.

Outro dia vi uma cena semelhante, com uma senhora que visivelmente não estava entendendo a oferta criminosa da caixa do banco. Ao ver que eu estava ao lado olhando, a funcionária do banco recuou e desconversou. Imagine quantas milhares de vezes ao dia a cena se repete. E quantas vezes o assalto é bem sucedido. Agora, os bancos inventaram um jeito de poderem praticar o crime de maneira mais discreta, reduzindo o risco da indignação pública nas filas. Meteram umas divisórias de vidro que impedem aqueles que estão na fila vejam ou escutem o que acontece na boca dos caixas. A desculpa chega a ser ridícula. Dizem os gerentes de duas agências em que perguntei a razão da medida que é “para segurança dos clientes” – teoricamente para evitar assaltos à saída das agências. Conversa fiada. É para facilitar o assalto que acontece dentro das agências, para garantir privacidade à ação criminosa dos caixas. Não, em sua imensa maioria eles não são criminosos, são igualmente vítimas da engrenagem. Em minha família há duas pessoas que são funcionários de grandes bancos e estão gravemente adoentadas emocionalmente por isso.

É claro que os lucros dos grandes bancos não são feitos exclusivamente sobre o roubo aos velhos aposentados. Mas eles funcionam como os assaltantes de farol: evitam os mais fortes, preferem os mais frágeis — é mais fácil e seguro.

As fontes de lucros dos bancos são diversas e todas elas assentadas sobre práticas comparáveis aos saques feitos nas guerras.

Há um artigo memorável e atualíssimo do professor Ladislau Dowbor publicado no site Outras Palavras em outubro de 2014, “Bancos: o peso morto da economia brasileira”. Leia, é de fato imperdível. Nele, Dowbor detalha as fontes dos lucros do sistema financeiro no Brasil. Os números são referentes a 2014, mas são ainda mais escorchantes em 2015.

1. Juros dos crediários: há uma “pegadinha” malandra dos bancos, que é a de apresentar as taxas apenas referentes ao período mensal e esconder o número anualizado. Facilita engambelar as vítimas. Com base em números oficiais da Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) – dados de junho 2014 –, Dowbor informa que os juros praticados no mercado para a compra de uma TV eram de 6,87% ao mês, um juro real ao ano de 122% – “literalmente, um assalto”, escreveu o professor.

2. Juros para pessoa física: “Tomando os dados de junho 2014, constatamos que os intermediários financeiros cobram juros de 238,67% no cartão de crédito, 159,76% no cheque especial, 234,58% na compra de automóveis. Os empréstimos pessoais custam na média 50,23% nos bancos e 134,22% nas financeiras. Estamos deixando aqui de lado a agiotagem de rua, que ultrapassa os 300%.” Dowbor não escreveu, mas a agiotagem de rua é, em boa medida, controlada pelos grandes bancos. Mas esclareceu que os números para o cartão de crédito – juros de 238%, segundo a Anefac – eram estimados em 280% pela Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs)! Achou pouco? Em setembro de2015 o Banco Central informou que os juros do cartão de crédito haviam ultrapassado 400% ao ano – muito mais que a “agiotagem de rua” de 2014.

3. Juros para empresas: Escreveu Dowbor que “as taxas de juros para pessoa jurídica não ficam atrás. O estudo da Anefac apresenta uma taxa praticada média de 50,06% ao ano, sendo 24,16% para capital de giro, 34,80% para desconto de duplicatas, e 100,76% para conta garantida. Ninguém em sã consciência consegue desenvolver atividades produtivas, criar uma empresa, enfrentar o tempo de entrada no mercado e de equilíbrio de contas, pagando este tipo de juros. Aqui, é o investimento privado que é diretamente atingido.”

4. Juros sobre a dívida pública: Os bancos são os maiores detentores de títulos da divida pública. Ganham uma fortuna. Mais uma vez, o texto do professor Ladislau: “Quando gastamos 5% do PIB para pagar os juros da dívida pública, significa que estamos transferindo, essencialmente para os bancos donos da dívida e um pequeno grupo de afortunados, cerca de 250 bilhões de reais ao ano, que deveriam financiar investimentos públicos, políticas sociais e semelhantes. Para os bancos, é muito cômodo, pois em vez de terem de identificar bons empresários e fomentar investimentos, tendo de avaliar os projetos – enfim, fazer a lição de casa – aplicam em títulos públicos, com rentabilidade elevada, liquidez total, segurança absoluta. É dinheiro em caixa, por assim dizer, e rendendo muito.”

“Nesse caso, além do efeito macroeconômico, há outro: a chantagem política e a ameaça constante contra o governo. Este é um processo não apenas brasileiro, mas global, como bem tem anotado o Papa. Outro professor, François Morin, da Universidade de Toulouse e membro do conselho do Banco Central francês, lanço em maio o livro “L’Hydre Mondial [A Hidra mundial], sobre os 28 bancos que dominam a economia mundial. Numa entrevista em setembro de 2015, também publicada noOutras Palavras, ele adverte sobre a situação-limite das dívidas públicas e de como os Estados estão nas mãos dos bancos: ”Todas as condições estão maduras para um novo terremoto financeiro ocorrer, quando os Estados estão exangues. Ele será ainda mais grave do que o precedente. Ninguém pode desejá-lo, porque seus efeitos econômicos e financeiros serão desastrosos e suas consequências políticas e sociais podem ser dramáticas. Podemos vê-los na Grécia. Urgência democrática e lucidez política tornaram-se indispensáveis e urgentes”.

2015 foi um ano duro, a crise foi forte no Brasil não foi? Pessoas perderam empregos, empresas fecharam ou tiveram prejuízos, o setor público entrou em crise em todas as esferas, nacional, estadual e municipal. Mas para os bancos o céu continuou de brigadeiro.

Parece inacreditável, mas é verdadeiro. A cada trimestre, este ano, assistimos – alguns abismados — os bancos continuarem a bater recordes em seus lucros. Recordes sobre 2015, 2014, 2013, 2012. Recordes sobre anos difíceis para a economia e anos de crescimento acelerado. Para os bancos, só boas notícias.

O ano nem acabou mas os números são maravilhosos – para os banqueiros, é claro. Até agora, sabemos o que os bancos lucraram até o fim de setembro. Não trema. Fiquemos apenas no “trio de ferro”, os três grandes bancos de rede do país.

O Itaú lucrou até setembro R$ 17,6 bilhões; o Bradesco, R$ 12,7 bilhões; o Santander, R$ 6,6 bilhões. Não trema. Até setembro de 2015 os três bancos arrancaram de aposentados, de pessoas e empresas que precisaram de créditos, de incautos (nós todos) que pagamos tarifas e do Estado dinheiro suficiente para terem um lucro de $ 36,9 bilhões. Não é que eles arrancaram isso da sociedade. Não. Eles arrancaram muito mais. Isso é apenas o lucro. Mantido o desempenho dos trimestres anteriores, Itaú, Bradesco e Santander terão um lucro de ao redor de R$ 50 bilhões em 2015!

Apenas três instituições financeiras terão drenado da sociedade para seus cofres, em ações que numa sociedade marcada pelo respeito ao próximo seriam criminalizadas, R$ 50 bilhões em um ano! Para os mortais comuns, um número como este é tão estapafúrdio que perdemos o senso de grandeza. São números macroeconômicos. A direita brasileira quer o golpe contra Dilma por causa das tais “pedaladas fiscais”. Segundo os números do Tribunal de Contas da União (TCU) e outros disponíveis na imprensa, elas estariam entre R$ 40 bilhões e R$ 57 bilhões. Os roubos mensurados na Petrobrás até agora alcançam R$ 19 bilhões. Mas veja que os números referentes às tais pedaladas e à corrupção na Petrobrás são a soma total de anos a fio: no caso dos bancos, é o butim de apenas um ano!

Mas não há uma linha sobre este assalto ao povo brasileiro nos jornais, revistas, TVs. A velha mídia cala. Há uma operação complexa e torpe na sociedade. Alguns dos elementos desta operação de legitimação do assalto ao país são:

1. A velha mídia tem parte expressiva de suas receitas oriunda das verbas publicitárias dos grandes bancos. Só em 2015, o Itaú entregou R$ 225 milhões para o patrocínio do futebol na Globo! Lembre o que o lucro do ano do Itaú não embute este valor. O banco terá lucrado algo como R$ 24 bilhões já descontada a grana para o futebol da Globo (só para o futebol, sem contar o resto). O quadro repete-se em relação aos outros dois bancos do “trio de ferro” e em relação a todos os veículos da velha mídia, em suas diversas expressões. Dá pra imaginar a Globo ou a Folhaou a Veja dando manchetes ou entrando em campanha contra os lucros obscenos dos bancos?

2. Os chamados “jornalistas econômicos” buscam suas informações sobre os bancos… nos próprios bancos ou nas entidades patrocinadas por eles!

3. Os bancos agem mais ou menos como os traficantes nas favelas. Tentam comprar a opinião da sociedade com obras de alto valor percebido pelas comunidades ou sociedade. Os traficantes de drogas bancam campinhos de futebol, piscinas, transportes para as comunidades. Assim, o Itaú tornou-se algo como um mecenas da pós-modernidade. Itaú Cultural, MAM e tantos outros investimentos culturais. Você acha que é o Itaú que paga. Mas é você! É do dinheiro arrancado dos aposentados, do governo, das pessoas e empresas endividadas que eles “fazem bonito”. Mais uma vez: o lucro dos bancos exclui o que investem nestas ações.

Esta ação perversa dos bancos, pois travestem de bondade e consciência o que é cortina de fumaça para legitimar os lucros arrancados com o suor do país todo, estende-se evidentemente ao cenário político. Os bancos, direta ou indiretamente, financiam partidos e candidatos e, se o vento sopra pra esquerda, lá vão eles para a esquerda; se sopram para a direita, lá vão eles. Acabamos de ter um ministro da Fazenda que era funcionário do Bradesco até chegar ao cargo – o que foi revelador dos descaminhos do segundo governo Dilma logo ao seu início! Dá pra imaginar o ex-funcionário de um dos três bancos do “trio de ferro” defendendo o país da ação nefasta das instituições financeiras?

Como diz o Papa, a ditadura do capitalismo é “sutil”. Os grandes bancos são um dos principais protagonistas da construção deste sistema ditatorial. É sutil, mas, como acrescentou o Papa, é crescentemente insuportável: “não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos…”.

Encerro esta primeira meditação com o fim da entrevista de François Morin: “A hidra bancária nasceu há cerca de dez anos, e já tomou conta de todo o planeta. O confronto de poderes, entre bancos avassaladores e poderes políticos enfraquecidos, parece agora inevitável. Um resultado positivo desta luta – a priori desigual – só pode ocorrer por meio mobilização de cidadãos que estejam plenamente conscientes do que está em jogo.”

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