Para um amigo que perdi

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista

Mais um amigo cruza o rio que espera paciente por cada um de nós. Antonio Felipe de Salles Neto, o “Felipão”.




Há algum tempo encontrei-o, solitário, num banco da praça central. Sentei-me ao lado dele e conversamos sobre algumas memórias. O fusquinha azul-claro que ele teve, bem jovem, e que nos levou a bailinhos adoráveis, em cidadezinhas próximas nestas amplas e surpreendentes Minas Gerais.

Um fusquinha equipado com gravador em que ele colocava fitas. A sonorização de automóveis estava na pré-história como ainda ocorre com muita coisa. Éramos, todos nós, parte dos garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones, a quem acrescentaríamos Pink Floyd e outros mais. Eu já adorava o Animals e o vocalista Eric Burdon. O rebelde e adorável Burdon que, aos 81 anos, foi eleito “o cantor mais sexy do planeta” na edição de dezembro da revista Glam Mag.

Minutos atrás, solitário e abrigado em um pequeno apartamento enquanto desenvolvo um trabalho local, dediquei ao meu velho amigo a canção “Yesterday, when I was Young”, interpretada por Burdon e que eu mesmo ganhei de uma adorável namoradinha com planos de se casar comigo. Sorte dela que não aconteceu. Sou um lobo que uiva para a Lua e ela procurava por um marido.

Felipe andava adoecido, eu sabia disso. Mas não encontrei coragem para visita-lo, conversar sobre qualquer dos muitos assuntos que poderíamos puxar, como um daqueles “Bilhetinhos da sorte”, que periquitos tiravam de uma caixinha. Periquitos & vendedores de bilhetinhos da sorte que nunca mais vi, de uma multidão de cenas que desapareceram como se fossem cenários de uma peça rápida de teatro. Mas que são a representação da vida.

Eu com a consciência latindo à noite, tirando partido do silêncio, por não ter feito o que, na essência, não mudaria nem muda nada, no fluxo brevíssimo da vida.Tivemos, Felipe não esteve nessa, a primeira bandinha de rock da cidadezinha.

Parrot estava lá, na guitarra solo e Carlos Augusto, o “Portuga” no baixo. O baixo ele mesmo produziu, a partir da eletrônica, agora simplória, comprada numa loja especializada. A caixa de som fizemos em parceria, plugada a um amplificador retirado da loja do pai dele, que aquecia em meio às nossas apresentação e exigia um tempo de pausa para voltar a operar. O amplificador que nos tornou insensíveis a choques elétricos. Peninha foi nosso baterista e fui o vocalista, por culpa do Burdon, o rebelde e adorável Burdon.

Tocamos em festinhas de bairros, em cerimônias de formação de cursos de datilografia e apenas isso me faz sentir um dinossauro que sobreviveu ao que boa parte das pessoas chama de “meteoro”. O bólido de uns 10 km de diâmetro que transformou a vida na Terra.

Portuga continua ativo, como médico, Peninha um psicólogo aposentado e Parrot também se foi. Pode parecer saudosismo, reconheço, mas não é nada disso. Muita coisa, agora, é melhor. Creio que eu mesmo sou mais feliz e tranquilo que fui.

Trago, em meu corpo, aquele garoto que me abriu as portas do mundo, por uma curiosidade que sobrevive a toda prova. O que faço, agora, é um tributo a um amigo querido, de quem me distanciei como um desgarrado.

Função do tempo, coisa que pode nem existir, ilusão do cérebro e do que costumamos identificar como “realidade” para a formatação de eventos que, combinados, tecem a teia da vida.

Vi uma foto do Felipe numa publicação local. Me pareceu mais sério e compenetrado que no passado, quando tocávamos na fanfarra do colégio que então era o centro do Universo. Mas o Universo não tem centro, eu viria a descobrir.

Um abraço amigo de viagens adoráveis, de gentileza incomum e generosidade.

Viaje em paz.

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