Festival folclórico na ilha no meio da floresta excede em magia, mas vida real da cidade padece com graves problemas ambientais
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
À esquerda da catedral de Nossa Senhora do Carmo, tudo – casas, muros, placas, bancos, equipamentos urbanos, corações, mentes, almas – é azul; do outro, um mundo vermelho se espalha até onde a vista alcança, e além. Assim, a banda toca em Parintins, ilha mágica do Rio Amazonas, endereço da polarização que realmente vale a pena, a dos bois Caprichoso e Garantido.
O Festival Folclórico mobiliza a floresta e o mundo muito além dela há 56 anos, num espetáculo de cultura e rivalidade, beleza e organização, inventividade e fundamento. Importada do Maranhão, a lenda do boi bumbá misturou-se aos preceitos amazônicos para produzir festa única na Terra, que se preserva até do assédio alienígena do mundo corporativo.
Imagem emblemática do evento comprova a rendição de marcas poderosas, como Bradesco e Coca-Cola, vermelhas no resto do mundo, que lá se travestem de azul, por causa do Caprichoso. Faz sentido – a coerência cultural dos bois ultrapassa as fronteiras da ilha e tem influência decisiva na política do Amazonas.
Em 2023, o governador Wilson Lima – bolsonarista que defendeu publicamente um “liberou geral” para o garimpo na região, entre outras barbaridades ambientais – engoliu o próprio conservadorismo e “sequestrou” a festa. Investiu no evento, mirando a eleição para prefeito do ano que vem. Segunda maior cidade do estado, Parintins é estratégica na política estadual, e o atual inquilino do cargo, Frank Bi Garcia (PSDB), foi reeleito em 2020 (quatro mandatos no total).
A vida real da ilha, para além da dicotomia azul e vermelha dos bois, revela uma profunda tragédia administrativa. Inserida no maior sistema fluvial do mundo, Parintins não tem água potável própria para o consumo humano. Isso mesmo – a endêmica poluição dos mananciais recomenda que moradores e turistas bebam água mineral. É a primeira orientação recebida pelos viajantes, ao desembarcar dos barcos grandes, médios e pequenos que chegam pelo rio, ou nos aviões no pequeno aeroporto local. (Quem não tem como comprar encara o risco de doenças diversas.)
O esgoto corre constrangedoramente diante da vista de moradores e forasteiros e, quando chove forte, correntezas imundas brotam pelas ruas. A cada ano, pelo menos 40 mil pessoas vão à cidade para o festival, o equivalente a quase metade dos 96.372 habitantes aferidos pelo Censo 2023 (um dos muitos municípios que teve redução na população). O contraste da festa com a realidade fora dela vira um apocalíptico cartão postal.
A precária estrutura turística obriga a alguns perrengues superados pela magia do duelo de Caprichoso e Garantido. Quem vai se apaixona para sempre, adota um deles e, como os locais, para até de falar o nome do outro, que vira “o boi contrário”, no dialeto do festival. As apresentações, ao longo de três noites, são um encanto absoluto, com alegorias incríveis, canto vigoroso, coreografias criativas e a participação inflamada das torcidas.
Tamanha magia levou as escolas de samba do Rio a contratar artistas de Parintins, que usam sua perícia na construção dos carros que passam na Sapucaí. O mais bonito do desfile de 2023, o São Jorge iluminado da Vila Isabel, foi obra dos craques amazonenses.
Tudo muito bom, tudo muito tem – mas quem ganhou esse ano? O Caprichoso (o azul) venceu por três décimos, diferença que não fez jus ao abismo de qualidade exibido no Bumbódromo. De qualquer jeito, garantiu o bicampeonato, seu 25º título, contra 32 do Garantido. Em 2024 tem mais da apaixonante festa, outra das incontáveis preciosidades que a Amazônia oferece ao mundo.