Passantes

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Por Cláudio Lovato Filho, jornalista e escritor

O morador de rua mal se lembra do próprio nome (Maurício Santos Pereira) nem da idade (47 anos) nem de onde nasceu (uma cidade no interior do Mato Grosso do Sul), mas segue em frente.




Ele passa pela garotada na saída do colégio, uma garotada que (claro) ri e se empurra e ri e se abraça e ri.

Um ônibus freia antes da faixa de segurança e o motorista faz sinal para que o grupo atravesse: um fuzuê de risadas, tênis, mochilas e celulares coloridos.

Com astuto olhar desatento, a turma do boteco da esquina observa a cena. Boteco, cujo dono, Setembrino, o Bino, nesse momento olha para a TV e fala mal do VAR, que anulou o gol do seu time ontem à tarde.

Quem discorda é Luiz Heleno, um dos frequentadores mais antigos, que mata o que ainda havia de cerveja no copo e diz “Fui”. Vai e, antes de tomar o rumo de casa, resolve passar na lotérica, pensando assim: “Se eu não jogar, aí sim, é certo que não vou ganhar”.

E faz duas Lotofácil, pagando em dinheiro em papel e moedas para a moça do caixa, que se chama Elaine. Ela sorri para ele do mesmo jeito que sorriu para outros cinquenta ou cem antes dele.

O apostador seguinte deseja a ela “boa semana” e sai, gentil, mas de cenho franzido. Está preocupado com a grana, com as contas da casa, com os parcelamentos, com a fatura do cartão de crédito. E então pensa que, se ganhar no jogo, vai mandar esta vida para o diabo que a carregue e vai viver de verdade.

E, no meio dos pensamentos, ele quase esbarra no ambulante que vende fones de ouvido e capas de celular. O ambulante veste a camisa do clube amado, número 10 às costas, orgulhoso pelo resultado de ontem, feliz da vida com o VAR. Hoje vai comprar o botijão de gás e ficar mais sossegado, sem as reclamações da mulher e sem estresse, tá ligado?

Então vem um sujeito de camisa branca e paletó cinza, que diz “vou levar um fone”. O sujeito tira R$ 10,00 da carteira, pega o fone e vai em direção à estação do metrô.

Viaja em pé no vagão cheio, conferindo as mensagens no celular. Tem pressa, e, ao que tudo indica, o almoço vai ter que ficar para mais tarde, talvez para a hora do jantar. “Chefe novo é uma merda”, ele diz quase em voz alta, e os passageiros em volta riem.

A que mais ri é uma mulher alta de cabelos encaracolados, que virou chefe há pouco tempo na repartição pública em que trabalha. Dali a duas estações ela, Gabriela, desce numa das avenidas mais movimentadas do centro da cidade. O celular toca, ela confere e não atende; guarda o celular na bolsa e, em instantes, entra no prédio da secretaria de estado.

Prédio de onde está saindo, nesse exato momento, o assessor de imprensa do secretário, falando ao celular (claro). ”Ele está sem agenda esta semana, João. Vamos deixar para a semana que vem”.

O assessor dobra numa rua transversal e entra num restaurante muito tradicional na região. Senta-se a uma mesa perto da porta e pede ao garçom o prato do dia – picadinho à brasileira. ”Valeu, Rochinha”, e o Rochinha, um dos garçons mais antigos da casa, sai anotando o pedido.

Um dos caras no grupo da mesa próxima ao banheiro faz o sinal para fechar a conta, e Rocha sinaliza afirmativamente. Esse cara da mesa perto do banheiro está se sentindo muito bem hoje: recebeu um tremendo elogio público no trabalho e foi aplaudido pelos colegas. É um vendedor e vem se saindo muito bem; bônus em cima de bônus – e vai pagar a conta hoje.

Na saída do restaurante, ele é abordado pelo morador de rua que quase não se lembra do próprio nome (Maurício Santos Pereira) e que, em sua peregrinação, acabou por dar as caras naquela rua, naquele momento.

”A fome tá apertando, doutor “, ele diz, e o vendedor craque do time da empresa dá a ele uma nota de R$ 10,00. ”Deus abençoe, doutor”, mas o homem nem olha para ele, não sorri, não fez nenhum gesto, nada; apenas dá as costas e vai embora com os colegas.

O segurança do restaurante vai em direção ao morador de rua e pede, em voz tentativamente calma e controlada, que ele vá saindo, numa boa, só vai saindo, ok?, beleza?, valeu.

E o homem que um dia já foi chamado pelos familiares e amigos de Maurício, Mauricinho, Mauricião vai saindo, vai-se embora, segue em frente.

Segue em frente.

E quase nem vê quando passa correndo por ele, em direção ao Uber, um sujeito que acredita ter um nome a zelar e que está convicto de que vai deixar, de forma profunda e permanente, sua marca no mundo.

Foto: Cláudio Lovato Filho

Sobre o autor:

Cláudio Lovato Filho nasceu em Santa Maria (RS) em 8 de abril de 1965. Ainda na infância mudou-se com a família para Porto Alegre, onde, em 1988, formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em Santa Catarina, nas cidades de Blumenau e Florianópolis, foi repórter de jornal, assessor de imprensa e redator publicitário.

Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1992, para trabalhar em comunicação empresarial e realizou coberturas jornalísticas em 20 países.

É autor de três livros com histórias ambientadas no universo do futebol: Na Marca do Pênalti (Editora 34, contos), O Batedor de Faltas (Editora Record, contos) e Em Campo Aberto(Editora Record, romance).

Teve contos publicados em diversas antologias. Desde 2016 mora em Brasília.

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