Passeando por São Paulo na literatura contemporânea

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Cinco livros para ver a capital paulista pelos olhos de alguns de seus muitos personagens; e também, é claro, refletir sobre questões sociais e urbanas da cidade

Por Vitor França, compartilhado de Diário do Comércio




Passeando por São Paulo na literatura contemporânea

Um dos grandes prazeres de se viver em São Paulo, a despeito de todos os seus muitos defeitos, é que a cidade sempre pode nos surpreender. É tanta gente, tantos lugares, tantos caminhos, que uma vida apenas às vezes parece pouco ante as tantas possibilidades que a cidade nos oferece todos os dias.

“A arte existe porque a vida não basta”, dizia o poeta maranhense Ferreira Gullar. Pois a literatura foi a forma que encontrei de tentar transcender esse limite imposto pela vida; e, com ela, vivo um pouco das muitas São Paulos que me escapam no rodo cotidiano.

No trem que me leva todo dia da Barra Funda a Osasco, posso ir da Rua Teodoro Sampaio até as imediações da Praça Roosevelt com Kabeto, narrador-personagem do romance “Maior que o mundo”, do Reinaldo Moraes; ou observar frequentadores de um restaurante badalado na região da Avenida Paulista onde trabalha a garçonete protagonista do “Tudo pode ser roubado”, da Giovana Madalosso.

Adoro os clássicos que nos apresentam a São Paulo do passado, como “Brás, Bexiga e Barra Funda” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”; é na literatura contemporânea, contudo, que encontro a cidade que encaro todos os dias, a cidade que me irrita, que me deprime, que me encanta; mas que, a partir dos livros, encaro sempre com uma nova perspectiva – a dos personagens tão reais que habitam suas obras de ficção.

E é nas obras contemporâneas também que emergem muitas das questões urbanas e sociais que ocupam o tantas vezes cansativo debate público; mas com uma liberdade de forma e conteúdo que somente a literatura é capaz de proporcionar.

Lá em 2008, por exemplo, o Zeca de “Pornopopéia”, do escritor Reinaldo Moraes, já se incomodava com as transformações em curso no Baixo Augusta decorrentes da mudança do público frequentador da região. “… desviei o olhar pro outro lado, o da rua, onde a muvuca escoava espessa em mão dupla. Táxis, viaturas, carangas turbinadas de garotões, som a mil, só pagode, bate-estaca clubber e hip-hop de mano. E um cortejo de pedestres onde se destacavam universitários descolados de classe média e uma garotada estilosa, neopunks, neo-hippies, neo-emos, neo-qualquer-merda, uma caterva nova que deu de frequentar a Augusta duns tempos pra cá. Sei lá. Não acho que essa gente combine muito com a putaria, que, para eles, é só um cenário urbano ‘radical’, ou merda assim”, observa o narrador, apontando para os primeiros indícios do que muitos classificariam como o início do processo de “gentrificação” da região.

Vale lembrar que a Rua Augusta, de polo de comércio de alto luxo frequentado pela elite paulistana até a década de 1950, entrou em decadência a partir da década de 1970 por causa, entre outros fatores, da crescente dependência do automóvel, do aumento da criminalidade e da sensação de insegurança, tornando-se então famoso ponto de prostituição da cidade. A partir dos anos 2000, passam a surgir por ali casas noturnas, bares e teatros, atraindo um novo público e “valorizando” a região, que volta a despertar o interesse do mercado imobiliário.

É a verticalização no Baixo Augusta, por sua vez, que vira objeto de crítica do Kabeto, protagonista do “Maior que o mundo”. O Farta Brutos, boteco da região em que costuma se refugiar, fica em um “velho casarão, único sobrevivente da chacina imobiliária que devastou o antigo casario da área ao longo dos últimos, sei lá, sessenta ou setenta anos, cedendo lugar àquele ramalhete de prédios comerciais espalhados por umas quatro ruas desertas”, diz a narrativa, evidenciando problemas da verticalização de São Paulo, como as torres exclusivamente corporativas sem térreos ativos, que “matam” a vida na rua.

O casarão, de 1908, é “uma célula solitária em que está contido o DNA da antiga cidade deitada que já foi São Paulo, antes da verticalização agressiva de bairros inteiros”, continua. A resistência à verticalização, por sinal, é uma posição que ganhou bastante destaque com as recentes discussões a respeito da revisão do Plano Diretor.

Para o bem ou para o mal, é preciso ter em mente que transformações nas características de ruas e bairros são naturais do processo de desenvolvimento urbano em uma grande cidade na qual cresce a demanda por moradia – desenvolvimento este, é claro, que deveria ser melhor acompanhado pela preservação de imóveis específicos com reconhecido valor histórico ou arquitetônico.

Também são muito naturais, por sua vez, tanto a revolta ante as transformações bruscas observadas na cidade (e na sociedade em geral) quanto essa espécie de nostalgia e rebeldia reacionária que caracteriza os protagonistas de meia-idade do Reinaldo Moraes – com os quais tantas vezes me identifico. C’est la vie!

Cruzamento da Rua Augusta com a Rua Fernando de Albuquerque (Foto: Nina Lezzi)

Por falar em mercado imobiliário, comprar o apartamento onde mora de aluguel na região central de São Paulo é o principal objetivo da garçonete que protagoniza “Tudo pode ser roubado”, cujo único sonho é “sentar no sol com uma xícara de café e ler revistas”.

Depois de anos vivendo em um apartamento apelidado de “o fungo”“cercado, rendido por outros quatro prédios que o encurralavam no centro do quarteirão”, cujas “janelas davam para uma medianeira de um desses prédios, com tanta proximidade, que se eu esticasse bem o braço, quase conseguia tocar o revestimento alheio”, ela conseguiu se mudar para outro, que, muito longe de ser uma joia da arquitetura paulistana, ao menos possibilitava que visse o céu e tomasse um pouco de sol.

E foram exatamente estes fatores, céu e sol, que a levaram a desejar o apartamento, a despeito do aluguel mais caro. “Mas o melhor foi quando entramos no apartamento e o corretor, me puxando até a varanda, disse: olha a vista. Olhei para baixo e encontrei a Rua do Glicério na sua mais completa exuberância, cheia de lixo e de viciados em crack revirando sacos, pitando cachimbos ou andando para lá e para cá na sua conhecida paranoia. […] O corretor só não levantou meu queixo porque seria indelicado, mas logo disse: olhe para cima, veja os prédios. […] Na altura dos meus olhos estava a cidade na sua forma clássica, cinza e vertical, aqui e ali pontuada por uma pichação ou por uma janela mais intrigante, com pequenos traços de horizonte escapando como esmolas entre as construções. E, embora isso representasse uma melhora enorme em relação ao meu apartamento anterior, não foi isso que me conquistou. O que me dobrou e me fez ficar literalmente de joelhos naquela varanda foi a parte que o mercado imobiliário com todos os seus dentes não podia abocanhar. Lá em cima estava o céu, o mesmo modelo que cobria a Oscar Freire e a Faria Lima, […], azulão e cravado pelo sol naquela tarde de segunda”, descreve a irônica narradora.

Para alcançar seu objetivo de comprar o apartamento – e, por que não, também por causa de seu baixo salário e dos preços exorbitantes dos imóveis –, ela furta itens de luxo (roupas, joias, relógios, óculos escuros) de pessoas que conhece casualmente e os vende para a amiga dona de um brechó.

Outra observação logo no início da narrativa revela ainda uma São Paulo além de feia, degradada e, mesmo assim, pouco acessível, também carente de espaços públicos ou na qual os espaços públicos são mal planejados e pouco frequentados, uma cidade onde o lazer e os encontros parecem exigir necessariamente dinheiro, seja em um bar, café ou restaurante.

Uma das laterais do restaurante em que ela trabalha, perto da Avenida Paulista, “dá para uma praça que poderia ser um cartão postal de São Paulo caso São Paulo fosse honesta a respeito de si mesma. A praça é só um banco e um chafariz, sombreados por prédios de escritórios. Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro, talvez porque eles não saibam muito bem o que fazer com um banco e um chafariz. Nossos clientes é que dão uma certa vida para a praça, esperando mesa por ali com seus drinques na mão”.

Por sinal, uma praça privada muito semelhante à descrita por ela, conhecida como “pracinha do Spot”, que fica no quarteirão formado pela Alameda Ministro Rocha Azevedo, Avenida Paulista e Rua Frei Caneca, além de pouco convidativa, recentemente foi cercada e fechada por questões de segurança. Até nossas escassas áreas de permanência e convivência podem nos ser roubadas…

Como em “Tudo pode ser roubado”, também o roubo aparece como solução para o desejo de publicar um novo romance de Kabeto, escritor com bloqueio criativo de “Maior que o mundo”. Até se apropriar de um manuscrito alheio encontrado ao acaso numa caçamba na Bela Vista, ele registra em um gravador impressões e reflexões que lhe vêm à cabeça ao caminhar pelos bairros de Pinheiros, Cerqueira César e Consolação. Em dado momento, por exemplo, costura pensamentos aleatórios sobre o bairro da Luz e o problema das cracolândias, também mencionado rapidamente pela protagonista da Giovana Madalosso.

“São Paulo, vista da Estação Especial Internacional, no site da Nasa, parece uma teia de luz com alguns pontos de brilho mais intenso. […] Em São Paulo tem a Luz, pobre e soturno bairro. Fica a vinte minutos de caminhada lá de casa. Muita gente mora na Luz. São duplamente luzitas: moram numa cidade que reluz e no bairro da Luz. Muitos dos luzitas da Luz são, na verdade, os trevosos zumbinoias da Cracolândia. Trevícolas da Luz, é o que eles são. Mesmo quando pipam sua pedra de crack debaixo de um poste de luz de vapor metálico, o que a luz da luminária clareia é só o negror do destino apagado de suas vidas mortas. Crack! Onomatopeia da existência rachada ao meio ”, divaga.

Aspectos urbanos e do setor imobiliário da cidade também perpassam outro romance da Giovana Madalosso, o “Suíte Tóquio”. A tal suíte, afinal, nada mais é do que o quarto de empregada (tão característico dos antigos apartamentos da classe média alta paulistana) onde vive a babá Maju, mais uma espécie de soldada do que Fernanda, a patroa, chama sarcasticamente de “exército branco” – babás vestidas de uniforme branco que ocupam a praça de seu bairro (e de tantos outros de classe alta) com os filhos de seus patrões.

A leitura do livro, que aborda questões que vão dos conflitos da maternidade à relação de exploração entre patrões e empregados domésticos, fez com que eu me lembrasse dele toda vez que vou a uma praça em bairro rico de São Paulo, em particular ao Parque Buenos Aires, em Higienópolis, onde a escultura “Mãe”, de Caetano Fraccaroli, vive ironicamente rodeada pelo “exército branco” das babás batizado por Fernanda, a “mãe ausente” do romance.

Escultura “Mãe”, de Caetano Fraccaroli, no Parque Buenos Aires, em Higienópolis (Foto: Ana Shad)

Outro livro que aborda questões relacionadas à maternidade é “A pediatra”, de André Del Fogo, romance no qual Cecília, a protagonista, é um pediatra que não gosta de crianças e despreza os métodos de parto ditos humanizados – ainda um privilégio das poucas mães “prontas para se opor ao sistema médico do Itaim, sem sair do Itaim”, conforme ironiza a narradora. Vale lembrar que, enquanto, no mundo, em média apenas cerca de 20% dos partos realizados são cesárea, no Brasil esse número ultrapassa os 50%, passando dos 80% quando consideramos apenas o sistema privado de saúde, no qual a capital paulista, com alguns dos melhores hospitais do mundo, é referência no país. 

Em comum, todos os romances se passam predominantemente nas zonas oeste ou central da capital e estão carregados de humor, ironia e sarcasmo. “Pornopopéia”, “Maior que o mundo” e “Tudo pode ser roubado” trazem protagonistas remediados, para quem a sobrevivência na cidade depende de favores, trabalhos enfadonhos mal remunerados ou mesmo pequenos furtos. “A pediatra” e “Suíte Tóquio”, por sua vez, nos apresentam representantes da classe média alta paulistana, sendo que no último temos também escancarada a contradição entre a vida da patroa e da empregada, que se alternam na narração em primeira pessoa da história.

Uma metrópole feia, suja, degradada, pouco acessível e quase nada convidativa; violência, golpes, roubos, furtos, cracolândias, desigualdade, luxo, pobreza; lugares cheios, solidão, pessoas vazias; gente se virando para sobreviver, gente buscando motivo para seguir vivendo; gente enlouquecendo dentro de suas próprias bolhas; e, apesar de tudo isto, uma cidade excitante e cheia de possibilidades.

Todos os livros, assim, são ótimas opções para quem quer ver São Paulo por outros olhos e ângulos, refletir sobre seus problemas sociais e urbanos e reconhecer ou não a cidade apresentada pelos seus protagonistas; ótimas opções também para quem quiser simplesmente passear pela capital paulista com seus muitos personagens sem precisar nem mesmo sair do lugar.

Para passear por São Paulo através da literatura contemporânea:

“Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes (2008)

“Maior que o mundo”, de Reinaldo Moraes (2018)

“Tudo pode ser roubado”, de Giovana Madalosso (2018)

“Suíte Tóquio”, de Giovana Madalosso (2020)

“A pediatra”, de Andréa Del Fuego (2021)

IMAGEM: Paulo Pampolin/DC

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