Por Fernanda Baldioti, compartilhado de Projeto Colabora –
Em relato, conto como foi a experiência pouco comum de ser acompanhante numa ala para pacientes com coronavírus
As marcas profundas da máscara tipo N95 até que desapareceram rápido do meu rosto, mas o som do monitor de sinais vitais custou a sair da minha cabeça. Fiquei oito dias e oito noites em um quarto para pacientes com Covid-19 da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, o hospital que ficou conhecido em todo país por prestar os primeiros socorros ao então candidato Jair Bolsonaro logo após ele ter sido atingido por uma facada durante a campanha. Mas não, eu não estava com a doença. Também não sou profissional de Saúde. Fui acompanhante da minha mãe, que precisou ser internada devido a complicações causadas pelo coronavírus.
Desde o início da pandemia, imagens de médicos e enfermeiros mostrando smartphones e tablets para que pacientes internados pudessem ver suas famílias ganharam o mundo e evidenciaram uma das mais cruéis faces desta doença: o isolamento de quem se ama.
E especialmente em um momento tão delicado quanto a internação – quando a ansiedade, o medo e a angústia tomam conta -, ficar sozinho, sem um rosto conhecido amparando, torna o combate ainda mais difícil.
Era uma segunda-feira à noite quando minha mãe, aos 65 anos, foi internada com a saturação baixíssima. Minha prima, que já tinha tido Covid, a levou para o hospital. E aí começamos a pensar quem seria o acompanhante para os dias que viriam pela frente. Meu pai, também aos 65 anos, diabético e com problemas cardíacos, não era uma opção. Minha irmã estava com Covid.
Assim, às 5h de terça-feira, após uma noite em claro com a cabeça e o coração em Minas, parti do Rio de Janeiro rumo a Juiz de Fora. Não dirigia na estrada há mais de dez anos. Mas me agarrei a uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e fui, deixando para trás meu marido e minha filha de 4 anos.
Comprei uma máscara equivalente à N95 e entrei no hospital às 10h. A vontade era de abraçar minha mãe. Não pude. Mas só de poder vê-la, de olhar nos olhos dela, me senti aliviada. E sei que, da parte dela, também foi acolhedor ter a filha por perto. Minha mãe estava no 12º dia de sintomas. Para alguns médicos, a fase crítica de contágio já havia passado. Para outros, não.
De qualquer forma, segui protocolos que inventei da minha cabeça com base em tudo o que li sobre Covid nos últimos meses. E sendo jornalista, não li pouco. Como a minha cama tinha cerca de um metro de distância para a dela, dormi de ponta cabeça e com a máscara no rosto.
Para todos que reclamam comigo de usar a proteção, digo sempre: eu dormi de N95. Nada pode ser mais incômodo do que isso. Menos pela dificuldade de respirar e mais pela dor física da pressão nas orelhas e nas bochechas.
Apesar da máscara, do álcool 70% para tudo (gastei uma média de 1 litro por semana), o contato era inevitável. Não com o abraço que a gente tanto queria. Mas para colocar a comadre, ajudar no banho, servir o almoço, o jantar, o lanche…
Preferi não pensar no risco de me contaminar. O foco ali era a recuperação da minha mãe. Só isso me preocupava. Ela internou com 91 de oxigenação e menos de 25% do pulmão comprometido. A tosse era terrível.
Quando as crises vinham, eu estava ali para dar força, para dizer: vai passar, nossa senhora está aqui, respira. E repetia essas frases de efeito quando o medo e a ansiedade tomavam conta da minha mãe. Com eles, vinha o choro.
A depressão batia à porta.
Estando com ela, fui, acima de tudo, uma animadora de torcida: levantava a moral, lia as mensagens das amigas e da família, assistia às missas do Padre Pierre, lia os códigos da mesa de cura enviadas por uma prima que faz Reiki e mesa radiônica…
Assim, fomos enfrentando cada dia, cada um com sua dificuldade, seus sustos (como quando a marcação do oxímetro foi caindo rapidamente até chegar a 88) e suas vitórias.
O quarto se tornou para mim um universo. Minha vida durante aqueles 8 dias se limitou àquele espaço – até as refeições eram feitas ali, já que o refeitório para acompanhantes foi desativado por conta da pandemia, segundo soube pela rádio corredor. Corredor, aliás, que não pude frequentar.
Para evitar a circulação de pessoas, não era permitido sair do quarto para chamar uma enfermeira, por exemplo.
Em caso de qualquer necessidade, era preciso acionar a campainha ou o telefone e aguardar até alguém aparecer.
Com um olhar quase antropológico, eu reparava o que se passava entre aquelas paredes: as faxineiras e as enfermeiras em sua maioria eram mulheres negras, como eu já tinha lido em reportagem do #Colabora, em contraste com o quadro médico, todo composto por pessoas brancas…
Fiquei chocada com o passivo ambiental: cada profissional que entrava colocava um novo avental de TNT e novas luvas. Toda a comida e até mesmo a água eram servidas em recipientes plásticos, descartados no lixo hospitalar em seguida para não haver risco de contaminação.
Certa vez, recebi uma paçoca e tentei devolver, já que não gosto do doce. Não pude. Tivemos que descartar já que havia entrado no quarto.
Também entendi o significado da expressão “visita de médico”. Mas vi, sobretudo, uma equipe muito dedicada, bem-humorada e disposta a tornar aquela experiência mais confortável mesmo com as dificuldades e o cansaço dos meses de enfrentamento da pandemia.
Lembro de numa quarta-feira à noite, uma enfermeira comentar que só entre 19h e 23h, 5 pessoas foram internadas naquele andar. Mal sabíamos nós que o pior cenário da pandemia ainda estava por vir.
Pela TV, eu e minha mãe vimos a primeira brasileira a ser imunizada no país e, claro, nos emocionamos e vibramos, apesar da certa frustração pelo imunizante não ter chegado antes e evitado todo aquele sofrimento para nós e tantos outros.
Também vimos a falta de oxigênio em Manaus e agradecemos muito pelo ar que chegava ao catéter da minha mãe e salvava a vida dela naquele momento.
Não só pela questão Manaus, mas sabíamos a todo momento que éramos privilegiadas por estarmos juntas, por minha mãe poder arcar com os custos de um plano, que é regional, de enfermaria, mas que, por conta da Covid, nos ofereceu de “upgrade” um quarto – medida tomada para o hospital conseguir isolar os pacientes com Covid.
Também foi por iniciativa própria que resolvi fazer um PCR antes de voltar para o Rio. E deu negativo. Um alívio. Poderia encontrar minha filha após 8 dias. A esta altura, minha irmã já tinha se curado da Covid e teve a felicidade de presenciar o momento que tanto sonhamos: a alta da minha mãe, no 12º dia de internação.
Por uma ligação de vídeo, vibrei, chorei, agradeci. E agradeço aqui a todos os profissionais de Saúde que nos ajudaram e ao hospital por ter me dado a chance de estar ao lado da minha mãe nesse combate.
Não gosto de dizer que saímos vitoriosas porque ninguém pode ser vitorioso nesta guerra que estamos enfrentando. Com mais de 290 mil mortos – entre eles o nosso amigo Zé Kodak, o pai da Telma e sogro do Oscar, o pai da Renata, o sogro do Allan, o avô da Bella, a mãe da Isabella e da Maria Clara e mulher do Rodrigo, o irmão da tia Vitória -, não temos o que celebrar.
Procurada pelo #Colabora, a Santa Casa de Misericórdia não quis se manifestar sobre a decisão de permitir acompanhantes para pacientes com Covid-19. A Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) não soube informar quantos hospitais no país estão liberando acompanhantes para pacientes com Covid-19.
Em nota, a instituição esclareceu que a presença de um acompanhante no hospital não está proibida por lei durante a pandemia de Covid-19: “Entretanto, para mitigar a disseminação do vírus e zelar pela saúde de pacientes e profissionais de saúde, algumas instituições adotaram a diretriz.
A associação ressalta que essa decisão cabe a cada hospital e é baseada nas recomendações e protocolos dos órgãos responsáveis”, diz a nota, que vai ao encontro do posicionamento do Ministério da Saúde enviado à nossa equipe:
“Com o objetivo de garantir a segurança no atendimento de pacientes e a integridade de acompanhantes, visitantes e trabalhadores da saúde, o Ministério da Saúde elaborou o documento “Recomendações para acompanhantes e/ou visitantes nos serviços de atenção especializada em saúde durante pandemia de covid-19”, que traz orientações sobre o assunto. Cabe ressaltar que os serviços de saúde têm autonomia para aplicar as orientações específicas, considerando suas características individuais”.