A passividade que secou as torneiras 

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Por Ulisses Capozzoli, Portal Vermelho – 

À medida que a crise de abastecimento de água se escancara, é cada vez mais patética a maneira como o governo de São Paulo reage à situação. Na quinta-feira (29/1) foi a vez do subsecretário de Comunicação do governo, Marcio Aith, em artigo agressivo na Folha de S.Paulo arrolar argumentos na tentativa de fazer crer que o governo fez tudo o que podia e devia para evitar que a situação chegasse a um ponto de não retorno, onde estamos agora.

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Alckmin, como morador do Palácio, aumentou o consumo de água em janeiro de 2014 em 35% em comparação ao mesmo mês do ano anterior.Alckmin, como morador do Palácio, aumentou o consumo de água em janeiro de 2014 em 35% em comparação ao mesmo mês do ano anterior.

Que o subsecretário queira preservar seu emprego é compreensível. Mas que tente fazer isso à custa da inteligência dos outros é inaceitável.

O artigo do subsecretário, com sofrível capacidade de argumentação, consegue, a um só tempo, ser desrespeitoso tanto em relação à inteligência pública quanto injusto com a Folha de S.Paulo, por algo que o jornal, de fato, nunca fez: ser crítico em relação à maneira como o governador Geraldo Alckmin conduziu a situação, escorado na memória, sem respaldo da inteligência, o que significa dizer, sem o mínimo embasamento científico.

O governador não é um cientista, talvez seja necessário enfatizar, para refutar acólitos dispostos a qualquer sacrifício lógico no negócio escuso de vender peixe podre, como se tivesse acabado de sair do mar. Mas o governador poderia – e, mais que isso, deveria – para ser consistente com os desafios complexos da realidade, ouvir prognósticos e recomendações de cientistas. E isso, em nenhum momento ele fez.




As pessoas têm memória, ainda que ocorrências recentes, estaduais e federais, possam atuar para certo entorpecimento. É preciso acordar, a cada dia, tomar um banho apressado, dirigir-se ao trabalho e dar duro para pagar as contas no fim do mês, entre elas a da água, que acabou de subir, e da energia, que foi pelo mesmo caminho. Mas, se ficarmos remoendo a indignação, com desrespeitos no melhor estilo senhorial (o que comprova a atualidade de Joaquim Nabuco) não conseguiríamos fazer outra coisa senão protestar.

Ausência de serviços básicos

Em São Paulo, a segurança é sofrível, a saúde idem. E, agora, não temos água nem energia. Mas os preços são reajustados. Para cima, evidentemente. Paradoxo típico de uma sociedade discursiva, incapaz de consolidar um mínimo de cidadania e assim enfrentar abusos que brutalizam o dia a dia. Até porque, quando atividades nesse sentido se manifestam, espertalhões tratam, imediatamente, de colher os resultados em benefício pessoal. Uma versão dos variados estilos de vampiragem.

Foi o que aconteceu com a economia no consumo da água.

O consumo de água diminuiu, desde o início da crise, por um ato coletivo de cidadania. Mas o governador não hesitou um segundo para atribuir esse mérito a ele mesmo, por descontos pífios que trombeteou. As pessoas querem água para o banho e o café da manhã, não descontos cínicos na conta (aumentada) ao final do mês. Se um fato como esse não caracterizar anacronismo, então as pílulas de vida do doutor Ross, panaceia para nossas avós, apesar de pequeninas, resolveram até impasses históricos.

A verdade que se percebe de forma crescente é que, se os governos, em quaisquer instâncias, controlassem o ar que respiramos, faltaria oxigênio.

Pelo fato de as pessoas terem boa memória recordam-se da sistemática desconversação de Geraldo Alckmin quanto à dimensão da crise de abastecimento de água e mandam às favas o blablablá do subsecretario de Comunicação.

O governador renegou a crise enquanto pôde. Garantiu o que não tinha como garantir e, a custo, bem longe do período eleitoral (porque está de olho gordo na Presidência da República nas próximas eleições) admitiu a obviedade do racionamento que chegou à classe média, nas regiões privilegiadas da cidade. Porque na periferia, onde vivem as não pessoas, os destituídos de direitos elementares, a falta d’água não surpreende. É parte da miséria filosófica do cotidiano, em que o único que conta é um princípio básico das espécies: o instinto de sobrevivência.

Preparação necessária

Se o governo estadual tivesse adotado uma postura responsável, as pessoas teriam começado a se preparar para enfrentar a crise que tomava corpo no horizonte. Mas não fez isso e agora pretende dizer que fez. O subsecretário do governo, em seu desconjuntado artigo na Folha, tenta negar esse fato, organizando argumentos com a rude habilidade de um operador de empilhadeira.

Na verdade, o subsecretário seria mais útil se integrasse um esforço no sentido de amenizar o desastre criado pela falta d’água, com risco de caminhar para um cenário de ficção, se as chuvas não tiverem a generosidade que cada um de nós espera. Até porque, se a situação piorar, e tudo indica que isso vai acontecer, o peso dela recairá sobre o conjunto da sociedade, com custos maiores para os que podem menos.

O governador adotou, no seu jeitão caboclo, a expressão de gosto popular “gastão” para se referir a consumidores insensíveis à crise. Mas, adivinhem quem estourou o consumo de água, em janeiro do ano passado, quando a situação dos reservatórios já era crítica, apesar de negada pelo governo estadual? Ele mesmo, o ocupante do Palácio dos Bandeirantes.

Alckmin, como morador do Palácio, aumentou o consumo de água em janeiro de 2014 em 35% em comparação ao mesmo mês do ano anterior.

O leitor duvida? Fácil resolver o impasse. Acione o Google e veja o que os jornais, mesmo sistematicamente apoiadores do governador, publicaram sobre o insuspeito “gastão”.

A essa altura dos acontecimentos, em vez do esforço de pretensa blindagem do governo, tática exposta por Luciano Martins Costa neste Observatório, por que não tomam iniciativas práticas, cidadãs, capazes de justificar minimante os impostos pagos pela sociedade?

Por que o governo não se empenha, por exemplo, num projeto simplificado e de emergência para ajudar a população na captação de água de chuva, como alternativa (talvez a única) para amenizar a crise?

Por que a Sabesp não se vale de seus técnicos e especialistas em emergências desse tipo?

Ação em lugar de justificativas

O subsecretário de Comunicação talvez argumente, indignado, que essa não é tarefa de uma empresa do porte da Sabesp: envolver-se em projetinhos para captação de água de chuva. Mas a Sabesp não falhou, flagrantemente na tarefa nobre e específica de garantir água potável para o abastecimento da vida? Então, que seja criativa e, em lugar de esgrimir argumentos que fariam inveja a Cervantes, e seu herói fora do tempo, encontre uma maneira de amenizar o desastre que ajudou a provocar.

Os acólitos dirão, com a sabujice típica dessa classe de serviçais, que a estiagem é um fenômeno da natureza e que as diretrizes do governo não controlam as nuvens. Para quem pensa assim, talvez seja conveniente ler o documento “Carta de São Paulo”, na edição especial de Scientific American Brasil – “A exaustão das águas” – que chegou às bancas na sexta-feira (6). Um grupo de 16 especialistas brasileiros mostra, nesta edição, que a realidade é diferente da que pretende o subsecretário do governo: faltou embasamento científico, decisão operacional e visão estratégica, como o reuso da água em escala compatível com as necessidades.

Talvez valha a pena acrescentar que esse grupo pertence à Academia Brasileira de Ciência (ABC) e Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), portanto não se enquadra na classificação genérica usual de detratores políticos de um governo democrático.

Quanto à Folha, o subsecretário demonstrou ingratidão que surpreenderia mesmo um William Shakespeare, quanto à imprevisibilidade da alma humana. Na verdade, o jornal descuidou não só da água, mas de todo um conjunto de temas de indispensável interesse público para se engajar no partidarismo político e, assim, não tocar em pontos comprometedores de certa estabilidade geopolítica.

E o subsecretário ainda não se dá por contente?

Como lamentaria Hamlet: a ingratidão humana é destituída de limites.

*No Observatório da Imprensa

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