Religiosos que atuam nas bases questionam a capacidade dos líderes em entregar os votos que prometem nas negociações com presidenciáveis.
Por Gilberto Nascimento, compartilhado de The Intercept
LÍDERES E POLÍTICOS EVANGÉLICOS nunca foram tão cortejados por presidenciáveis quanto em 2022. Luiz Inácio Lula da Silva busca os votos deles de olho numa vitória já no primeiro turno. Jair Bolsonaro quer mantê-los consigo para fazer frente ao petista e, para isso, se dispôs a entregar a dois pastores próximos da família dele a tarefa de negociar e liberar verbas do Ministério da Educação, dando origem a um escândalo que derrubou o ministro e pastor evangélico Milton Ribeiro.
A adulação tem motivo. Até 2040, os evangélicos deverão ser maioria entre os brasileiros que seguem alguma religião. No longínquo 2010, eles eram 22,2% da população, segundo o Censo do IBGE. Mas a conversão caminha a passos largos, e isso leva políticos a visitar os gabinetes luxuosos dos chefes das congregações em busca de acordos que lhes garantam a boa vontade de bispos e pastores durante as pregações aos fiéis.
O problema é que o público não entrega votos com a mesma fidelidade com que paga o dízimo exigido nas igrejas pentecostais e neopentecostais como prova de convicção e fé, me dizem bispos e pastores de diferentes denominações e casos que recolhi ao longo dos últimos anos. Em outras palavras, lideranças como Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus, e Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, vendem algo que não sabem se conseguirão entregar.
A ideia de que o eleitor evangélico age em bloco não resiste a fenômenos recentes. “Os fiéis estão melhor informados sobre política e não aceitam mais qualquer imposição de voto vinda de pastores”, afirma o advogado Francisco Tenório, autor do livro “O Direito das Igrejas”, ex-seguidor da Universal e da Deus é Amor e hoje consultor e assessor de instituições evangélicas. “Se existem as fake news, também existe acesso a mais informações, facilitado pelo telefone celular. Então, é mais difícil manipular a opinião do fiel”.
No subúrbio carioca e em cidades da Grande Rio, há pastores evangélicos de igrejas como a Universal e a Assembleia de Deus que apoiam o PT e outros partidos de esquerda mas que não podem tornar pública a opção para não contrariar seus chefes e correrem o risco de perderem seus empregos. Por isso, é naturalmente difícil entrevistá-los. Mas o teólogo protestante Fábio Py, professor do programa de pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, diz ver “muitos desses casos”.
“Conheço pastores que dizem ser um contrassenso não votar no Lula, pois o PT é o partido que dá muito mais possibilidades à camada social que é o foco de nossa atividade religiosa. De forma silenciosa, esses pastores têm certa autonomia e vão tocando o seu trabalho à sua maneira”, corroborou.
O que move esses líderes não é simplesmente a simpatia pelo petismo, mas também uma boa dose de senso prático, segundo Py. É um raciocínio simples: quanto mais as políticas públicas permitirem o progresso econômico da população de baixa renda, mais dinheiro irá circular no interior das igrejas.
Fiéis durante culto dominical na Assembleia de Deus em Belém, Pará: crise econômica, desemprego e inflação pesam no bolso dos evangélicos nas periferias e dificultam a adesão a Bolsonaro.
Foto: Thiago Gomes/Folhapress
Trata-se de uma tendência que sequer é novidade. Bispo da Universal, cantor gospel e sobrinho do poderoso Edir Macedo, Marcelo Crivella, do Republicanos, não contou com todos os votos de fiéis de sua própria denominação na tentativa frustrada de se reeleger prefeito do Rio em 2020.
“Se todos os fiéis da Universal tivessem votado nele, Crivella teria tido uma votação muito maior”, garante um de seus apoiadores, o apóstolo Márcio Líbano, presidente da Associação de Ministros Evangélicos Interdenominacionais, a Amei. Ou seja, a péssima gestão de Crivella pesou mais que a fé professada por ele entre muitos evangélicos. A Universal tinha 1,8 milhão de fiéis, segundo números oficiais do Censo de 2010.
Na influente Assembleia de Deus do ramo Madureira, o líder máximo, bispo Manoel Ferreira, chegou a interromper uma celebração da Santa Ceia em sua sede no Rio para pedir votos a um músico que tocava saxofone nos cultos. A Assembleia de Deus congrega mais de 100 mil fiéis no Rio (se somadas todas as suas vertentes, eram mais de 12 milhões de seguidores em 2010), mas o saxofonista não chegou a três mil votos e ficou de fora da Câmara Municipal.
“Eu estava lá e vi. O bispo o colocou no púlpito. Isso foi em 2008, mas reflete o quadro atual. As igrejas evangélicas não têm mais esse poder de impor e eleger em bloco qualquer candidato”, me disse o advogado Tenório.
É um cenário que deve ser agravado pela crise econômica, o desemprego e a alta expressiva nos preços de itens básicos como o gás de botijão. Tudo isso aumenta a dificuldade que pastores conservadores terão para convencer fiéis de áreas pobres de subúrbios e do interior do país a votar em Bolsonaro, a quem grande parte dos líderes evangélicos já declarou apoio público.Universal e Assembleia de Deus estão com Bolsonaro, mas fazem acenos a Lula para manter aberta a chance de pular no barco do petista.
Os bispos e pastores mais influentes sempre gostaram de propagandear o poder que têm sobre seus fiéis e a força política de suas denominações. Mas, em 2022, se mostram mais cautelosos. “Quem decide o voto é o eleitor. Pastor não decide eleição. Nenhum líder pode impor o voto a ninguém. O máximo que podemos fazer é indicar, apontar caminhos, apresentar opções. Reconhecemos a legitimidade de todos os candidatos”, falou o bispo Abner Ferreira, da Assembleia de Deus de Madureira, filho de Manoel Ferreira. A frase dele foi dita logo após um encontro de Bolsonaro com líderes cristãos no início de março, em Brasília.
Manoel Ferreira já havia se encontrado com Lula e posado para fotos ao lado do petista no feriado de Corpus Christi do ano passado, no Rio. “Foi um encontro de um pastor com alguém que já foi presidente da República e com quem tivemos uma relação muito respeitosa. Eu tenho respeito pela história do Lula, não nego jamais”, justificou o filho Abner à época. “Lula tem um capital político, ninguém tira isso dele”.
A Assembleia de Deus de Madureira, assim, expôs uma posição ambígua que chegou a ser adotada também pela concorrente Universal. A igreja de Edir Macedo divulgou recentemente um texto em que diz que “cristãos não votam na esquerda”. Em seguida, instruiu um de seus líderes, o bispo Marcos Pereira, presidente do Republicanos, partido que é controlado pela denominação, a fazer críticas públicas a Bolsonaro.
A intenção é “não fechar portas” a nenhum candidato. Dessa forma, mantêm a possibilidade de mudar de barco na reta final da campanha, a depender do que dirão as pesquisas eleitorais. É algo que o próprio Macedo fez às vésperas do primeiro turno em 2018, quando abandonou o então tucano Geraldo Alckmin, que patinava nas pesquisas, e aderiu a Bolsonaro.
‘O evangélico está cético’
O apóstolo Márcio Líbano, que é líder do ministério Luz do Mundo, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, e é próximo de políticos ligados ao Republicanos e à Universal, reforça a ideia de que não se consegue mais definir o voto evangélico em bloco. Ele me disse que há, inclusive, colegas pastores que pretendem votar em Lula em outubro.
“Hoje há divisão [entre os fiéis na preferência por Lula ou Bolsonaro], embora o presidente leve um pouco de vantagem. Eu nunca votei no Lula, mas outros pastores votam”, afirmou Líbano. “O Silas Malafaia não fala por todos os evangélicos. Eu o admiro, mas ele não representa todos nós. Aquilo que havia antigamente, hoje não tem mais. O pastor pode indicar. Mas não pode obrigar”.
Para manter o apoio de seus fiéis a um presidente cujo governo entregou resultados econômicos pífios, cada vez mais líderes religiosos conservadores têm recorrido à pauta de costumes e reforçado suas falas contra o aborto e a agenda LGBTQIA+. Mas há cada vez mais evangélicos que se opõem a esse discurso, caso do bispo Hermes Fernandes, da igreja evangélica Rede Internacional de Amigas e Amigos, a Reina, do Engenho Novo, bairro da zona norte do Rio.
“Esses líderes conservadores dizem que, se a esquerda voltar ao poder, os pastores serão obrigados a fazer casamentos homoafetivos. E, se não fizerem, serão presos, as igrejas fechadas e a Bíblia proibida nas escolas. São as fakes news, como a mamadeira de piroca e a ideologia de gênero. E surgem chantagens, como se houvesse uma luta entre o bem e o mal, o candidato de Deus e o do diabo. Estamos combatendo esse discurso e procurando mostrar que a coisa não é bem assim”, disse o líder da Reina, que mantém igrejas nas zonas norte e oeste do Rio, na Baixada Fluminense, em São Paulo e Minas Gerais e tem pastores nos Estados Unidos e Portugal.‘É difícil hoje conseguir 100% dos votos evangélicos’, admite pastor que apoia Bolsonaro.
Mas, para Fernandes, o número de fiéis que se submetem a viver sob a tutela de um pastor ou de uma denominação vem diminuindo. “Eles começam a perceber que o líder não tem procuração para decidir por eles. Além do mais, é subestimar a inteligência dos seguidores. E muitos não querem estar numa igreja onde se apoia uma figura grotesca que faz apologia da tortura, do armamento, que é contra os direitos humanos, os indígenas e a comunidade LGBTQIA+. Assim, fica cada vez mais difícil aos pastores conduzirem os seus fiéis à candidatura Bolsonaro”, me disse.
A Reina, segundo Fernandes, não indica candidatos, nem faz campanha para qualquer político. Mas o bispo não esconde que acha Lula o melhor candidato no momento e o considera “o melhor presidente que o país já teve”. Além disso, a preferência dos evangélicos em sua “bolha” recai majoritariamente sobre o petista. Um quadro que se repete em igrejas e relatos de colegas pastores do Norte e Nordeste do país, segundo ele. A exceção, ao menos por ora, é o Sudeste, onde Bolsonaro leva vantagem “porque a influência da cúpula das igrejas é muito forte”, ponderou.
O bispo Fernandes não é nenhum neófito no meio evangélico. Ele assistiu ao nascimento e crescimento vertiginoso do neopentecostalismo. “Meu pai é o parteiro desse movimento no Brasil”, ele me disse com orgulho. Trata-se do missionário Cecílio Carvalho Fernandes, líder da antiga Casa da Benção, uma igreja por onde Edir Macedo passou rapidamente como obreiro no final dos anos 1970, pouco antes de fundar a sua Universal do Reino de Deus ao lado do cunhado Romildo Ribeiro Soares – o RR Soares, como é conhecido, hoje na Igreja Internacional da Graça.
Marcelo Crivella, ex-ministro de Dilma Rousseff e ex-prefeito bolsonarista do Rio: ele prevê a vitória de Lula em outubro.
Foto: Ricardo Borges/Folhapress
Antevendo um futuro polêmico, Cecílio Fernandes se negou, à época, a consagrar Macedo como pastor. Deu o título a Soares, mas não ao então jovem obreiro. Achava que havia algo errado com ele. Para o missionário, Macedo não tinha o “chamado de Deus” para seguir em sua missão.
Cecílio morreu em 2001, e o filho Hermes seguiu no meio evangélico em um caminho oposto ao de Macedo e de outros líderes evangélicos, como Malafaia e o pastor e deputado federal Marco Feliciano, hoje no PL de São Paulo. “Minha luta no meio evangélico tem sido investir na autonomia das pessoas e incentivar que pensem por si mesmas”, pregou Fernandes.
O apóstolo Márcio Líbano, da Amei, estima que seu preferido, Bolsonaro, tem hoje na região de Nova Iguaçu, cidade de 825 mil habitantes da Baixada Fluminense, a preferência de 60% dos evangélicos, ante 40% de Lula. Na capital do Rio, ele enxerga um empate entre os dois.
“É difícil hoje conseguir 100% dos votos [dos fiéis]. Uma das razões é que o político se infiltra na igreja, promove obras sociais antes das eleições para ganhar a confiança do evangélico. Aí, o fiel acaba votando nele. Mas depois se decepciona, porque nem sempre ele vai defender a nossa bandeira. Às vezes, dá as costas para você”, Líbano reclamou. “Isso deixa o evangélico cético sobre a política”.
O plano Crivella
O ex-prefeito Marcelo Crivella, que ficou preso por quase dois meses, no fim de seu mandato, acusado de liderar uma organização criminosa que aliciaria empresários em esquemas de corrupção, deve ser candidato a deputado federal pelo Republicanos do Rio em outubro.
Já mirando as eleições, Crivella reuniu no final de fevereiro cerca de 50 pastores de várias denominações evangélicas na Catedral da Fé, a sede da Universal no Rio.
Segundo o representante de uma das igrejas que esteve na reunião, Crivella e dois outros líderes da Universal – os bispos Jadson Santos e Inaldo Silva, vereador pelo Republicanos – ressaltaram, ao final do evento, a importância de obter votos para ter força no Congresso e negociar as reivindicações dos evangélicos num eventual governo Lula.
Hoje apoiador de Bolsonaro, Crivella, ex-ministro da Pesca do governo petista de Dilma Rousseff, vaticinou como quase certa a vitória de Lula, segundo uma pessoa presente ao encontro. Assim, a estratégia da Universal seria tornar Crivella um grande puxador de votos, com o apoio de outras igrejas, para tentar carregar à Câmara até cinco candidatos do Republicanos. E, naturalmente, votos de eleitores de Lula também seriam bem-vindos.
É um plano que faz sentido, segundo o advogado Tenório, para quem muitos evangélicos tendem a votar no candidato a presidente que preferirem e a optar pelo nome indicado por sua igreja para o Legislativo. Assim, estaria ajudando a combater o que pastores evangélicos conservadores chamam de a “ditadura dos gays”. “Continuam botando esse tipo de medo nos fiéis. Mas quem está na periferia sabe que, no governo Lula, pobre podia comer picanha e até andar de avião. E agora a situação piorou”.