Por Romualdo Dias, compartilhado de Jornal GGN –
Com humildade ele compartilhava os saberes possíveis de serem usados nos processos de organização dos movimentos sociais dos oprimidos em suas lutas de libertação de uma triste condição de sofrimento.
Nestes nossos tempos em que escutamos aí pelas ruas muita gente falando mal sobre Paulo Freire vale a pena reler um livro dele, e destacar uma ideia de leitura da realidade de nosso país por ele explicada. Antes de mostrar o lugar específico onde Paulo Freire nos fala deste tipo de leitura a ser feita além dos livros, na sábia combinação entre a leitura da palavra e a leitura de mundo, queremos expor alguns detalhes para incrementar a nossa discussão.
Nós estamos nos referindo ao livro escrito em dupla: Paulo Freire e Ira Shor. O título do livro é: “Medo e ousadia. O cotidiano do professor”. Este livro foi publicado no Brasil pela Editora Paz e Terra no ano de 1986. Nós temos em nossas mãos a 7ª. Edição, que é do ano de 1997. Este livro foi escrito no estilo de um diálogo com um professor dos Estados Unidos, que naquela ocasião era professor da City University de Nova Yorque.
Há um trecho do livro onde o próprio Paulo Freire nos explica sobre este estilo de livro. Assim ele nos diz:
“Acho válida a ideia de fazer um livro falado, e não escrito. Este livro falado me interessa por diferentes motivos. A questão, para você e para mim, é se seremos capazes de introduzir neste diálogo os possíveis leitores desta conversa. Isto vai depender do dinamismo de nossa discussão. Outro aspecto interessante é que um livro deste tipo pode ser sério sem ser pedante. Podemos tratar das ideias, dos fatos e dos problemas, com rigor, mas sempre num estilo leve, próximo ao dos dançarinos, um estilo amistoso.” (Páginas 12 e 13).
Um pouco adiante Paulo Freire nos inclui nesse tipo de diálogo na condições dos outros leitores. Assim ele afirma:
“O escritor precisa conhecer e interagir com o remoto leitor que provavelmente lerá seu livro quando ele próprio não mais exista. Em nosso caso, aqui, estamos, simbolicamente, diante de inúmeros leitores desconhecidos; mas nós estamos um diante do outro, você e eu. Em certo sentido, sou desde já seu leitor e, desde já, você é meu leitor.” (Página 13).
Em várias partes do livro Paulo Freire nos provoca para pensar sobre outro modo de fazer ciência a partir da discussão sobre o sentido do “rigor”. Assim ele nos fala logo no início:
“Se formos capazes de criar algum mal-estar entre nossos leitores, de lhes propiciar algumas incertezas, então o livro terá sido importante. Se pudermos fazer isso, o livro terá rigor. Seremos rigorosos. Creio que muitas pessoas são completamente equivocadas e ingênuas a respeito do significado da palavra rigor. Eu me sinto rigoroso se provoco você a ser rigoroso. O rigor é algo que existe na História, feito através da História. Por causa disso, o que é rigoroso hoje, pode não sê-lo amanhã.” (Página 14).
Nesta citação Paulo Freire nos dá a explicação sobre um modo de fazer a abordagem do “rigor” em matéria do pensamento e em outras formas de construir conhecimento apontando dois aspectos: primeiro, este fato de um pensamento ser capaz de causar mal-estar no outro. Aqui nós escutamos e entendemos como um pensamento que tem a potência de provocar em nós uma desestabilização, que é a condição para cada indivíduo se lançar em um movimento permanente de criação de mundo e de “re-invenção de si”, sempre em conflito, sem descanso. Em segundo lugar, há esta condição do rigor se fazer na História, neste terreno feito de tensões entre aquilo que nos determina a ser o que somos e aquilo que rompe com as determinações e nos obriga a experimentar novos horizontes de realização da vida.
Onde estava Paulo Freire quando ele escreveu este livro na forma de um diálogo com um professor americano? Ele estava justamente nos Estados Unidos. Paulo Freire menciona os anos de 1984 e 1985. Em seus agradecimentos nós conseguimos listar os nomes das seguintes cidades: Amherst, Massachussetts, Nova Iorque, Vancouver, Colúmbia. Paulo Freire estava passando uma temporada nos Estados Unidos fazendo uma residência na Universidade de Massachussetts.
Se Paulo Freire estava lecionando em uma universidade nos Estados Unidos, então, vale a pena destacar alguns aspectos sobre a condição desta sua presença por lá. Ele estava lá atendendo a convites de diversas universidades. Isto é, ele não foi para lá “de oferecido”, como se diz em uma linguagem popular. E nem estava lá em posição de subserviência, de adoração infantil de alguma suposta superioridade de outro povo. Paulo Freire estava lá compartilhando saberes e conhecimentos, por ele elaborados e acumulados, nos percursos de seu compromisso com os movimentos sociais, no Brasil e no mundo, que sempre lutaram pela liberdade, lutaram para sair das situações de exploração e opressão, e por meio de muitas e muitas experiências, sempre carregadas com os mais variados riscos, poderem inventar um mundo melhor, mais humano.
Paulo Freire estava nos Estados Unidos com a sua enorme generosidade, fazendo uma partilha de saberes, sem precisar ficar cultuando o outro país, e nem se mostrando arrogante. Com humildade ele compartilhava os saberes possíveis de serem usados nos processos de organização dos movimentos sociais dos oprimidos em suas lutas de libertação de uma triste condição de sofrimento.
Bem mais adiante do diálogo, Paulo Freire junto com o seu colega de diálogo, nos faz pensar sobre os diferentes modos de fazermos a leitura. Eles discutem sobre o significado de fazer a leitura da palavra em articulação com a leitura de mundo. Para tornar esta explicação mais incisiva Paulo Freire nos apresenta um exemplo, que para este momento no qual estamos passando no Brasil, se faz muito oportuna. O contexto da discussão nos relata sobre o sentido de leitura da realidade em movimento. Então vamos ao texto que mais nos interessa nesta nossa discussão, que é o núcleo desta nossa proposta de artigo, para este específico meio de divulgação de ideias. Vamos ouvir as palavras de Paulo Freire.
“Como exemplo de leitura de uma realidade em mudança, eu poderia falar sobre um homem no Brasil, um jovem, admirável, líder, um trabalhador que é o presidente do Partido dos Trabalhadores, também conhecido nos EUA, Lula, o famoso Lula. Ele tem apenas alguns anos de escola primária, mas, para mim, é hoje um dos melhores leitores da realidade brasileira, sem nenhum estudo universitário, nem sequer o colegial. Mas, ele está reunindo muita experiência na prática política como presidente do partido, compreendendo cada vez melhor a situação do Brasil. É lindo ver como ele responde às perguntas que lhe são feitas em programas de televisão, como debates com outros políticos, como discute com os chamados intelectuais, algumas vezes muito bons intelectuais, que trabalham no mesmo partido ou em outros partidos. Ele se sente seguro via a vis o momento histórico do país.
Outro dia falei com o Lula, depois de uma conversa na televisão onde um intelectual muito bom lhe disse: ‘Lula, você me surpreende, porque sei que você não tem tempo para ler, mas, ainda assim, você fala muito seriamente sobre o momento histórico do Brasil, especialmente sobre a situação hoje’. Então o Lula disse: ‘Realmente, eu não leio’. Eu disse, depois, que não concordava com ele: ‘Lula, você é um dos melhores leitores do Brasil de hoje, para mim, não leitor de palavras, mas leitor do mundo. Isto é, você está lendo a história que estamos fazendo a cada dia. Você a está compreendendo, a está apreendendo na medida em que você mesmo a está fazendo. Por favor, não diga mais que você não está lendo. Você pode dizer que ainda não está lendo livros. Mas você está lendo a história.” (Este texto foi retirado do livro “Medo e ousadia. O cotidiano do Professor”. Páginas 215 – 216, da 7ª. Edição, Editora Paz e Terra, ano 1977. Tradução de Adriana Lopez e revisão técnica de Lólio Lourenço de Oliveira).
Neste pequeno artigo queremos recortar a seguinte frase de Paulo Freire: “Você pode dizer que ainda não está lendo livros”. Fazemos o recorte porque precisamos muito deste advérbio, o “ainda”. Até parece que Paulo Freire está profetizando.
Ao assistir a diversas entrevistas de Lula concedidas durante este recente período em que esteve preso no cárcere da Polícia Federal em Curitiba foi possível confirmar o quanto ele estava aproveitando aquele seu tempo de prisão para se dedicar a leituras. Em algumas entrevistas ele inclusive levava alguns destes livros e os colocava sobre a mesa. Então, nós estávamos vendo alguns exemplares expostos em suas mãos. E pelos comentários presentes em suas respostas encontramos muitas provas do quanto a leitura estava sendo real e eficaz, o quanto aquele textos estavam auxiliando no aprimoramento daquela primeira leitura com a qual ele já possuía farta habilidade.
Enfim, seria até o caso de nos perguntarmos se com tanta tecnologia disponibilizada para a circulação de informações e de conhecimentos, nos nossos dias, é possível fazer chegar até Paulo Freire estas notícias sobre o quanto Lula também se tornou um leitor de livros. E, de nossa parte, podemos conferir o quanto a articulação entre os dois modos sábios de fazer a leitura, a leitura da palavra e a leitura de mundo, oferecem categorias mais agudas de compreensão sobre a situação de sofrimento em que o povo brasileiro se encontra no atual momento. Vemos também como a partir destas leituras Lula se mostra capaz de instigar os movimentos sociais a se lançarem em experiências de reinvenção de um país mais humano, de uma sociedade mais justa e mais igualitária.
Romualdo Dias – Professor vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP – Campus de Rio Claro. É pesquisador e consultor do CAF – Common Action Fórum, com sede em Madri, para a área de educação popular.