Por Marcelo Menna Barreto, publicado em Extra Classe –
Viúva de Paulo Freire fala sobre reedição da biografia e do legado de um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia mundial
A pedagoga e Doutora em Educação, Ana Maria Araújo Freire, que relançou pela editora Paz e Terra a obra Paulo Freire, uma história de vida, vai logo avisando: “não me chama de Doutora, pode me chamar de Nita mesmo. Nem de professora, eu já não estou lecionando. Estou com 83, vou fazer 84”. Nesta entrevista, a viúva de Paulo Freire (1921-1997) relata um pouco do que o educador português Licínio Lima diz no prefácio ser um trabalho ‘incontornável para os estudiosos do pensamento de Paulo Freire’, especialmente pelos documentos inéditos. Com a intimidade que privou com o patrono da educação brasileira, Nita Freire ainda se coloca na pele daquele que é considerado um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia mundial. Fala do movimento Escola Sem Partido, da violência contra professores e sobre os ataques que Paulo Freire tem recebido de pessoas “do calibre” de Magno Malta e Marco Feliciano. “Tenho pena de todas essas pessoas que se envolveram para levar uma coisa que traduz ignorância, porque o Paulo nunca foi um doutrinador. Pelo contrário, todo o trabalho de Paulo é de conscientização para a autonomia dos sujeitos, para as escolhas dos caminhos que cada homem e cada mulher quiserem tomar”, esclarece.
Extra Classe – O movimento Escola sem Partido e seus simpatizantes atacaram até Paulo Freire nas manifestações a favor do golpe. “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”, estava escrito em uma faixa. O que dizer disso?
Ana Maria Araújo Freire – Às vezes causa raiva; às vezes causa compaixão, diante do fato de que ou aquele rapaz que carregava essa faixa foi pago para carregar ou ele próprio confeccionou talvez com amigos. Tenho pena de todas essas pessoas que se envolveram para levar uma coisa que traduz ignorância, porque o Paulo nunca foi um doutrinador. Pelo contrário, todo o trabalho dele é de conscientização para a autonomia dos sujeitos, para as escolhas dos caminhos que cada homem e cada mulher quiserem tomar. O que o Paulo fez foi mostrar que o oprimido tem uma maneira de sair da condição de opressão. Ele se preocupou muito com as condições em quaisquer relações entre as pessoas. Não é justo ser apenas mandado, ser vilipendiado, em condições miseráveis. Essas pessoas têm que ascender socialmente.
EC – Isso tem incomodado muita gente nos últimos anos, não?
Ana Maria – Quem bota essa placa ‘Basta de Paulo Freire’ na realidade não quer uma divisão menos injusta das riquezas do país, não é? Tanto que os governos até FHC calculavam o orçamento da União baseado em 100 milhões de pessoas. Os 53 milhões que estavam de fora, esses não se contavam. Para eles não ia nenhuma obra de escola, de saneamento, de moradia, não ia.
EC – Voltando ao Escola sem Partido…
Ana Maria – Então, esse movimento Escola Sem Partido é uma coisa terrível, porque ele não quer que os alunos reclamem sobre o que a professora por acaso disse de errado ou por ver a professora levando temas da vida real para a sala de aula. De fato, eles não dizem nada e, depois, se queixam dizendo que se tem a obrigação de fazer reclamações para a diretoria. Abriram até um canal, não sei se funcionou, para as crianças escreverem diretamente para o MEC nessa linha: ‘professor tal falou de Marx na aula e disse que ele é muito bom’, por exemplo; falou de Paulo Freire: ‘Foi um homem muito católico, de muita fé, mas que alfabetizava’. Então, a alfabetização ficou no ‘mas que’… Que coisa perigosa!
EC – Não sabem o que estão falando.
Ana Maria – Então, são pessoas desse calibre! Aquele senador do Espírito Santo (Magno Malta – PR), que divulgou isso; que lutou por isto e na televisão está sempre nas discussões sobre esse movimento. Eu ficava boquiaberta sobre o que as pessoas diziam sobre Paulo. Não tinha nada a ver. Não conhecem e entram dentro de escolas fascistas, de ideologias fascistas, onde tudo que não é da dureza, do fascismo, é considerado como nocivo à pessoa e à Nação.
EC – Nesse contexto, além de marcar os 20 anos da morte do patrono da educação brasileira, o que significa para a senhora reeditar a biografia de Paulo Freire?
Ana Maria – Eu tinha muita vontade de reeditar, porque o livro fez dez anos e ele tinha dois erros meus, de extração minha, de dois nomes que eu coloquei errado. Tinha ainda duas questões importantes que é atualizar a linguagem e acrescentar os dados da vida de Paulo nesses dez anos que se passaram. Então eu acho que foi muito importante que a editora Paz e Terra quisesse reeditar o livro fazendo essas correções que eu apontei e pondo a público a vida, nos menores detalhes, do homem que lutou, lutou, lutou a vida inteira pela educação no Brasil. Paulo deu o seu corpo e a sua alma ao povo brasileiro; ao povo do mundo, mas sobretudo ao povo brasileiro.
EC – A atualização mantém vivo o pensamento do autor?
Ana Maria – Reeditar a biografia é deixar Paulo vivendo. Se eu não publicasse mais os livros que eu tenho direito, que Paulo me deixou como direito, se não tivesse atenta, procurando que a editora não se acomode em situações pouco visíveis para Paulo, ele já teria morrido com 20 anos. O Mario Sergio (Cortella, filósofo) conversando comigo me disse ‘Nita, os grandes pensadores daquela época de Paulo, como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, FHC, Celso Furtado, têm livros que estão vendendo muito pouco, quase nada, e o Paulo é campeão de vendas de livros científicos há muitos anos’.
EC – Freire é mais lido na atualidade do quando era vivo?
Ana Maria – Continua vendendo! Ele está sendo mais consagrado. Engraçado, quanto mais parece que perseguem Paulo; quanto mais batem em Paulo, mais ele cresce. É uma coisa impressionante. Mês a mês, ano a ano, de pouquinho em pouquinho Paulo vai sendo mais lido e mais conhecido. Sobretudo pelos livros Pedagogia da Autonomia e Pedagogia do Oprimido, sendo este a obra mais clássica, considerado o grande livro.
EC – E ao contrário de alguns intelectuais por aí, ele nunca disse ‘esqueçam o que eu escrevi’…
Ana Maria – E aí (gargalhadas) acontece que não está vendendo. Ele (FHC) não está vendendo. Pediu e levou, né?
EC – Na sua opinião, o Pedagogia do Oprimido é realmente o melhor livro de Paulo Freire?
Ana Maria – Eu considero par a par o Pedagogia do Oprimido com o Pedagogia da Autonomia, que é um outro enfoque da educação. É um livro que traz tudo o que o Paulo escreveu desde o princípio, lá no Recife e vem vindo, vem vindo, vem vindo num fio condutor que é a pedagogia em favor do oprimido. Não é a pedagogia do oprimido, mas é uma obra – lembrando que toda a obra de Paulo é a favor do oprimido – que eu acho que é muito mais carregada dessa linha de vamos nos fazer todos iguais, marcando nossas diferenças.
EC – Em que os documentos inéditos que serão disponibilizados nessa reedição, como poemas escritos de próprio punho pelo educador deverão contribuir para conhecermos um pouco mais do homem Paulo Freire?
Ana Maria – Eu acho que contribui em especial a poesia. O homem se abre muito. Tem menos censura, mostra mais a alma, o sentimento. Embora eu considere que vários livros do Paulo, por exemplo, Cartas a Cristina, mostra muito mais sensibilidade do que razão. Em Paulo nunca falta a razão, mas o caminho dele é o caminho do sensível.
EC – Por exemplo?
Ana Maria – Tem partes do Cartas a Cristina que são muito poéticas. Infelizmente é um livro pouco lido. Talvez por ser maior e tenha sido mais difícil de vender, mas é um livro que eu acho fenomenal, no qual ele fala do princípio da sua vida, da saída de Recife para Jaboatão; aquele sofrimento do pai, eles indo para uma casa muito pobre que, felizmente, ainda está de pé. Eu tenho lutado, mas ainda não consegui que algum órgão tombe aquela casa.
EC – Ou seja, um pensador que é referenciado no mundo inteiro, mas no seu país sofre ataques de setores conservadores e a resistência à preservação da sua memória…
Ana Maria – Aquela casa deveria ser tombada pelo Iphan! Porque ainda está de pé e é uma casa de mais de cem anos que não tem condições de sobrevivência por ser muito modesta. A gente vê no mundo inteiro as casas dos importantes, dos políticos, dos poetas, dos escritores, placas indicando que eles viveram lá. Aqui no Brasil, a memória histórica é muito desprezada. A cultura no Brasil ainda não foi entendida como parte necessária e fundamental para a formação da cidadania.
EC – Como a senhora analisa o surgimento desses movimentos fundamentalistas após o período de democratização?
Ana Maria – O mundo todo está caminhando para a direita. Quando os pobres, no caso da Europa, olham os exilados chegando, o medo que os nacionalistas têm é que esses vão tomar os seus empregos. Raramente aparece um nacionalista defendendo, acolhendo e protegendo pessoas que aparecem nesses barcos precários, chegando à Espanha, por exemplo. Mas, enfim, aqui no Brasil houve 13 milhões, há quem diga 40 milhões de pessoas que mudaram de classe social. Essa população que entra começa a abrir espaços. Ela quer espaço na universidade e quer espaço no emprego e vai conseguindo. Isso deixa a direita, a classe média, que é preponderantemente de direita no Brasil, revoltada. Esses movimentos, como você citou, misóginos, partem realmente dos que se sentem desprezados. Se fala tanto que Lula fez isto e isto, não! Na realidade, o que eles querem dizer é ‘trouxe essa classe que está nos aborrecendo e abafando e nós não conseguimos passar para o patamar acima, que é a classe de elite dominante’. Por que eles acreditam que podem passar (risos).
EC – Aqui em São Paulo isso é realmente muito perceptível…
Ana Maria – Não tem chance! Você não é aceito desde o clube que eles frequentam; você não é aceito numa mesa de banquete porque pode se atrapalhar com tantos talheres e tantos copos. Desde essas coisas pequenas, eles repudiam aquele que está querendo entrar, e não ajudam. Antes, preconizam o fracasso daquele cara pra ele deixar de ter a pretensão de ser classe alta, pra ele voltar pro seu canto. ‘Vá pro seu lugar que é classe média’. Então eu acho que nesses movimentos todos surgem novas ideologias e essas ideologias que estão surgindo não são as da tolerância, do respeito ao direito, do acolhimento, da seriedade, da concessão; aberta ao direito do outro. Pelo contrário, essas ideologias são combatidas nas ruas com pedras cassetes, etc.
EC – Recentemente uma professora do Paraná foi agredida por um aluno. Em média, dois professores por dia são agredidos em sala de aula no estado de São Paulo. O interessante, além de trágico nisso tudo, é que no ano de sua morte, Paulo Freire escrevia o terceiro capítulo do livro Cartas Pedagógicas, no qual analisa a banalização da violência como resultado de uma educação precária. O que a senhora acha que Paulo Freire diria sobre isso?
Ana Maria – Paulo diria que falta, primeiro, autoridade do professor. Essa autoridade não vem sendo concedida como antigamente pela família, pelo Estado, pela sociedade toda. O professor antigamente tinha um status alto, embora não ganhasse tanto dinheiro assim, ele tinha um alto status. No momento em que os professores começam a ser degradados, esse é um dos motivos. O outro motivo é que essas classes emergentes, que subiram, acham que o filho do rico insulta todo mundo, inclusive o professor, porque tem dinheiro e tem poder. E isso não é verdade. Então é por imitação, querer ser igual em tudo que ele (o aluno) vai e bate e diz ‘e aí qual é? Eu conheço o pessoal do município de Itapevi e um rapaz negro, muito modesto, superesforçado, competente, me parece que ele é homossexual também, foi agredido várias vezes pelos alunos. O que que a Secretaria fez? Colocou ele em casa. Deu licença de seis meses.
EC – Quer dizer que o agredido é que foi afastado?
Ana Maria – A Secretaria não enfrenta porque os pais desses meninos vão lá na escola e dizem ‘meus filhos aqui podem fazer o que quiserem. Podem subir em sofá, porque na minha casa sobem; podem insultar, porque na minha casa insultam’. Então, existe um respaldo também dos pais. E porque os pais dão esse respaldo? Porque estão muito ausentes, da presença, da presença educadora com relação a seus filhos.
EC – Como assim?
Ana Maria – Não existe uma grande preocupação. O que acontece aí é que eles enchem as crianças de mimos e de presentes. Brinquedos, cada vez mais brinquedos, ‘eu quero isso, eu quero isso’, as crianças fazem birra, batem os pés no chão e os pais dão, mesmo pagando em dez, quinze vezes se for possível. Ele não pode comprar aquilo, mas ele dá. Eu acho que é esse conjunto de coisas relacionadas que determina essa falta de respeito à pessoa do professor e da direção das escolas também.
EC – O deputado federal Marco Feliciano afirmou que o aluno agressor deveria ser considerado um sujeito oprimido pelo sistema. Como a senhora recebe esse tipo de ironia?
Ana Maria – (Longa pausa) Sintoma de almas perdidas pelo mundo, não é? Porque não é possível pessoas como alguns desses pastores que estão em evidência tratarem os seres humanos como um demônio que eles têm que exorcizar. Então essa professora, para ele, comete erros horríveis! Então, o menino ainda fez bem de bater porque está exorcizando o que ela tem de mal. É a única maneira como eu vejo essa coisa, que não é através de conhecimento científico, nem religioso, nem do senso comum. É uma coisa que parte do conhecimento de um ‘místico’ que vê as pessoas da seguinte forma: ‘aquela é ruim esse aqui é bom’. Não vê que o aluno já tinha uma ficha policial por muitas passagens de agressão, inclusive a professores. E o que a família estaria fazendo? Aquilo que eu disse antes: não estava fazendo nada.
EC – Como tratar agressores como esse?
Ana Maria – Vai ter que ter uma iniciativa do Estado de colocar o menino em um reformatório. Acho que nenhum lugar hoje se chama reformatório, mas deveria voltar a se chamar re-for-ma-tó-rio, porque essas crianças, adolescentes que vão pra lá são absolutamente insuportáveis para o convívio social.
EC – Paulo Freire se declarava cristão. Em seu exílio, inclusive foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça). Não é no mínimo anacrônico segmentos neopentecostais da Câmara Federal e do Senado, que se dizem cristãos, serem grandes opositores ao pensamento de Freire e defensores do Escola sem Partido?
Ana Maria – Essas igrejas novas, ao contrário da igreja católica, que está marchando para a esquerda, estão marchando para a direita e eles querem ter os seus fiéis absolutamente submissos. Às vezes eu deixo ligada a televisão e os meus filhos dizem ‘tira, tira mamãe’, mas eu quero ver como é! As pessoas ficam absolutamente enlouquecidas. A lógica usada é quanto mais você dá, mais você ganha. Eu acho que falta para as pessoas que frequentam essas igrejas aquilo pelo qual Paulo tanto lutou: cons-ci-en-ti-za-ção! Falta saber quem eu sou; quem está contra mim; quem está a favor. Só essas perguntas já as ajudariam, pois, muitas vezes, lhes foram negadas o ato de pensar. Você acha que um Magno Malta, um Feliciano e um Bolsonaro, por exemplo, iriam apoiar o trabalho de Paulo Freire? É até bom que não apoiem, porque até poderia manchar um pouco a biografia do Paulo (risos).
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