Um coro afinado de crianças negras vestidas de branco ressoa pelas paredes de uma pequena igreja perdida entre os campos de plantação do Mississippi, em 1932. Suas vozes, leves como o algodão colhido das lavouras, prometem elevar as almas daqueles corpos exaustos que sustentam com suor o pesado sonho de uma América grandiosa.
Por Erico Andrade e Thais Klein, compartilhado de BoiTempo
A canção é interrompida com a chegada de um jovem negro com feridas no rosto e um violão destroçado agarrado às suas mãos como se fosse um amuleto. O silêncio que toma conta do ambiente é quebrado pelo pastor que, para manter o progresso da América e a segurança física dos negros, condiciona a presença do jovem na igreja à renúncia da vida de músico. O pastor, pai do jovem, fala em nome de um Deus cuja vontade parece estar a serviço do senhor das plantações. Sua missão é eclesiástica: domesticar os corpos para o labor. Música? Só a da Igreja. A nação não pode parar.
É na aliança entre moralidade cristã, capitalismo e racismo que se ergue o projeto de nação norte-americano figurado em Pecadores (2025), marcado pela vitória da supremacia branca e imposto tanto pelo genocídio indígena, quanto pela escravidão nos campos de plantação. Brancos que criam uma irmandade de autoproteção e impõem aos negros o dever de serem exemplos de retidão — uma moral religiosa que garante, no caminho reto do Senhor, a única possibilidade de serem tratados como cristãos. Assim, o único canto permitido é o que se entoa dentro da Igreja, da boca de pessoas negras vestidas de branco.
Uma nação que, como sugere o título do longa de Ryan Coogler, só pode prosperar sob a condição de condenar ao extermínio todos aqueles que resistem à lógica implacável da produção e do consumo. A liberdade individual, ao mesmo tempo em que transforma em ouro (podemos pensar no dólar, moeda de lastro internacional) aquilo que produz, transforma corpos dissidentes em mortos-vivos. O filme não apenas retrata essa dinâmica — ele a encarna ao transportar o blues das lavouras de algodão para as salas de cinema, denunciando a terra prometida como um lugar que só conhece dois destinos: o ouro ou a morte.
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A trama se concentra em uma única noite — uma noite que não passa, uma noite de improvisos como o blues, tornando-se um acontecimento no tempo e no espaço. Regressando do Norte, os irmãos Fumaça e Fuligem carregam nos bolsos o dinheiro conquistado nos cassinos para comprar o prédio que antes funcionava como matadouro da Ku Klux Klan. Os planos da dupla de erguer uma casa de blues tecem, num mesmo fio, a história dos EUA e as cicatrizes singulares de suas próprias histórias: de um lado, um pai morto, cuja fama maldita continua a ecoar nas cordas de seu violão; do outro, o tio pastor, cujos sermões tentam domesticar a cultura em nome da sobrevivência. E no centro dessa encruzilhada, o blues.
Longe de ser uma simples trilha sonora, ele é a própria carne da narrativa e carrega toda a ambivalência da esperança de inserção social nesse projeto de nação, sobretudo a partir da promessa de liberdade individual através da ascensão financeira. O blues é o grito e a mercadoria, a força e o fracasso, a lamúria e o espetáculo. Por um lado, uma música de resistência negra e, por outro, objeto de vampirização pelo sistema capitalista e a sua capacidade de tornar tudo coisa sem encantamento.
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Pecadores é uma obra-prima da sétima arte que refaz o encantamento do mundo — entre a magia ancestral e os mitos vampíricos. A imortalidade dos vampiros, que sugam a vida para prometê-la apenas após a morte, revela-se metáfora brutal: a América de Trump não criou, mas apenas escancarou essa lógica. Ela ecoa, sem véu, a mesma máxima que justificou os horrores coloniais — “O progresso não pode parar”. Dos campos de algodão do Mississippi às linhas de montagem de Detroit, nos discursos de “Make America Great Again“, o que persiste é a mesma engrenagem que tritura vidas em nome do progresso econômico que supostamente trará a liberdade individual. Uma “grande missão” que, não por acaso, sempre enriquece os mesmos e enterra muitos.
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Ao protagonista — o jovem negro, filho do pastor, que é interpretado nas cenas finais por Buddy Guy — cabe agarrar-se à música como quem salva a própria alma. O blues é um caminho que se desloca tanto da igreja, que exige da música uma forma de catequese, quanto contra o capital branco que a reduz a mera mercadoria.
A cena inicial e a cena final do filme se conectam para mostrar que a origem e a história do blues são compostas por múltiplas fases e formas de cooptação. Mas nenhuma delas conseguiu apagar o encantamento experimentado naquela noite: não como louvor de almas cristianizadas ou espetáculo para “branco ver”, mas como exercício profundo de liberdade — uma dança que, em seu ritmo, é uma caminhada coletiva.