Matheus Pichonelli, Carta Capital –
Entre o “maluco americano” e o brasileiro que defende a chacina como solução para a violência, a diferença é o acesso ao revólver
Dylann Roof, de 21 anos, é suspeito de matar 9 pessoas em igreja da Carolina do Sul
Antes de sair dizendo que “americano é assim mesmo, tudo meio maluco” e que lá, diferentemente de cá, é comum alguém surtar e sair atirando a esmo, olhe bem para o jovem autor do atentado que matou nove pessoas na histórica igreja da comunidade negra em Charleston, na Carolina do Sul (EUA).
Veja como ele se parece, em corpo e espírito, com aquele seu amigo de colégio que você reencontrou dias atrás no Facebook e descobriu que agora curte a página “supremacia branca” e “orgulho paulista”. Ou com aquele primo de Ribeirão das Couves que ouviu a vida inteira os pais dizerem que está tudo perdido, ninguém se dá o respeito, que mulheres, negros e populações LGBT têm direitos demais, cotas demais, marchas demais, feriados demais, e nós, ozomi branco, carregamos o país nas costas. Este primo, ninguém sabe explicar como ou por quê, causa choque nos almoços de domingo ao defender que “um tiro na cabeça desses caras resolve tudo”.
Feche os olhos e tente imaginar onde esse tiro imaginário acerta. Ou onde tem acertado na vida real. Relembre a pregação no almoço de domingo desse mesmo sujeito segundo quem o brasileiro é mole, avesso ao trabalho, que resolve seus problemas na base do samba e da cerveja e que as coisas por aqui não vão “pra frente” devido à ausência de caráter associada à nossa bagunça étnica e racial. Relembre também das estatísticas sobre trabalho infantil e homicídios desse país que na cabeça do seu primo é pacífico e preguiçoso. Nesse país, se você for negro, tem 2,5 vezes mais chances de morrer se sair às ruas, mas ele jura que militância por direitos iguais é luta por privilégio.
Repare como o atirador americano retratado como “maluco” está mais perto de você do que parece. Ele está na TV falando em demônios e justiçamento. Está nos olhos paranoicos de quem grava vídeos de haitianos que vieram até aqui ROUBAR (sic) nossos postos de trabalho. Está naquele vídeo do linchamento compartilhado pela manada que, entre urros e ereções, diz ter achado “é pouco”. E está armado com vaias, paus e pedras contra tudo o que desobedece a ordem na qual ele se criou e acredita. Essas pedras, muitas vezes, são disparadas entre salivadas e acertam quem estiver na frente – e deve coincidência, por aqui, o fato de a testa-alvo ter sido a de uma jovem negra de religião afro. Essa jovem negra já era direta ou indiretamente atacada diariamente por destemperos verbais que a associam a demônios, perigos e magia negra.
Lá, como cá, o ataque é diariamente construído. Não tem nada de surreal ou irracional: tem alvo, método, discurso e justificativa.
A diferença entre o jovem atirador americano e o seu primo meio sonolento/meio justiceiro é que, para o primeiro, basta atravessar a rua para comprar uma arma com nota fiscal. No caso, era presente de aniversário. O atentado em Charleston é fruto do milagre da multiplicação das leis de proteção aos cidadãos de bem que transformam paranoia em saliva, saliva em pedra e pedra, em bala de munição. Transformam também homicídio em justiçamento, e tiram das mãos do Estado a responsabilidade de dizer quem protege quem.
Não por acaso, o relaxamento do Estatuto do Desarmamento é o sonho de consumo de quem produz e de quem é bancado por quem produz armamento. Sua defesa é uma fábula. Para quem acha que o problema do Brasil é falta de armas, uma pesquisa realizada pelo Ministério Público de São Paulo e pelo instituto Sou da Paz mostrou que 78% das 10.666 armas usadas pelo crime e apreendidas entre 2011 e 2012 no território paulista têm origem na própria indústria brasileira. Isso significa que, um dia, os artefatos foram vendidos legalmente no país. Ou seja: a legalidade do porte também pode servir ao crime.
Mas não só. Serve como munição a tragédias como brincadeiras de criança ou discussão mal resolvida entre marido e mulher, pais e filhos, vizinho e vizinhos, patrões e empregados. Municia também o discurso de quem, cansado da “lentidão” da Justiça, do Estado e do papa, decide levar sua interpretação pessoal de justiça a quem não tem nada com a história.
Louco não é quem atira. É quem finge não ver.