Pequeno ensaio sobre a ganância

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Por Maria Fernanda Arruda, Correio do Brasil –

Se toda atividade profissional pressupõe determinadas características que, uma vez reveladas, mostram o popularmente chamado “calo profissional”, pode-se afirmar, sem dificuldade maior, que a figura do político sempre foi marcada pela vaidade

Como não se trata de um ensaio linguístico, valem simplificações, desde que não distorcidas. Aqui, algumas lembranças sobre a ganância dos políticos e, assim, entendemos a ganância em seu sentido original: é o lucro que resulta da prática de ato de comércio. E assim temos a síntese da síntese: a ganância dos políticos brasileiros é o lucro que resulta de sua prática sistemática de atos de comércio, ao que reduziram as suas vidas . Literalmente, alguns políticos fazem-se homens de vida fácil.

Um ataque sem trégua promovido pela mídia conservadora levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio

Se toda atividade profissional pressupõe determinadas características que, uma vez reveladas, mostram o popularmente chamado “calo profissional”, pode-se afirmar sem dificuldade maior que a figura do político sempre foi marcada pela vaidade. O poder que assume o homem público faz com que ele seja cercado e conviva com os áulicos, os que o enaltecem, na busca de favores. A vaidade, com certeza, é alimento do narcisismo, é o afago que, no momento em que promete, cria o compromisso. Basta a lembrança de dois grandes políticos vaidosos. Rui Barbosa, o que compensou a figura pequena e feia com o apuro no vestir-se e na exibição acintosa de sua inteligência e cultura. Fernando Henrique Cardoso, o de bela estampa e voz melodiosa, aceitando sempre os elogios de mulheres e de homens, elas, diante do homem bonito; eles, diante do “príncipe dos sociólogos”. Um sintoma para o fácil reconhecimento da vaidade dos políticos: o fardão e o espadim da Academia Brasileira de Letras. Rui Barbosa e FHC não foram gananciosos, mas foram extremamente vaidosos.




Uma vaidade mais discreta, mas que não o impediu de também vestir o fardão da imortalidade acadêmica, foi a de Getúlio Vargas, o que amou o poder, a ser exercido pela Nação. Contrariando a regra geral, Vargas não suportava os áulicos e punia os elogios fáceis com o desprezo. Claramente, não foi ganancioso, não praticava atos de comércio. Villas-Bôas Corrêa, jornalista de tempos em que o jornalismo exigia competência e ética, conta em seu livro notável, “Conversa com a Memória”, de sua visita a Vargas, em sua estância em São Borja, às vésperas de ele assumir a Presidência da República, por uma segunda vez. Vale repetir o que ele viu e conta, um quadro assustadoramente surrealista para os dias de hoje:

Maria Fernanda Arruda

“A conversa vadia entrou pela noite. Getúlio ordenou a Gregório Fortunato que servisse uísque a quem quisesse. Apareceu uma garrafa pela metade e, em prato de sopa, pedaços de gelo picados a facão. Na bandeja redonda de metal pintado com cores vivas e desbeiçada pelo uso, equilibrava-se uma dúzia de copos de tamanhos, feitios e cores as mais variadas. Getúlio empunhou uma caneca verde, lembrança de alguma festa de fazenda, cruzada por faixa pintada com duas palavras: Amizade e Saúde… Lá pelas tantas, uma mosca caiu no copo. Ele não se alterou. Com o dedo mindinho esticado, catou o inseto afogado, livrou-se do cadáver com um piparote e continuou a conversar… Aproveitei a brecha para bisbilhotar a casa.

“Pequena, sala e três quartos, cozinha e um banheiro. Móveis velhos, descascados, bambos. O quarto de Getúlio lembrava a modéstia de catre de pensão de estudante. Encostada à janela, a cama patente de molas frouxas, colchão com as depressões de anos de uso. Roupa branca, de fazenda áspera e de má qualidade. Lençóis e fronha de tropeiro. Encostado na parede livre, armário de duas portas, sem espelho, que pelo estado seria recusado por belchior. Olhei em volta. Ninguém. Abri as duas portas folheadas do armário. Num pau roliço, fixado de um lado ao outro, uma dúzia de cabides com as bombachas, as camisas do sumaríssimo guarda-roupa do ex-ditador que mandara no Brasil durante 15 anos e estava na rota da volta ao Catete.”

Vargas e seus contemporâneos viviam política e faziam política. Não existiam mansões em penínsulas e em parte alguma, não se colecionavam jóias e automóveis, não se usava vaso sanitário climatizado, não se faziam deslocamentos e jatinhos da FAB. Não existiam contas na Suíça. Política era assunto machista, mulheres ficavam em casa e não eram exibidas em banquetes. Jornalistas não mantinham casos amorosos. Um mundo acanhado, puritano… Havia algo de provinciano no mundo político brasileiro. O mesmo Villas-Bôas observa que “no tempos do Congresso no Rio a convivência com a família e a vigilância das esposas impunham a continuidade da rotina doméstica da pacata vida interiorana e da pausada cadência das capitais da maioria dos Estados”, Esse mundo precisava modernizar-se, mas mantendo-se ético. O que e quando tudo isso mudou?

Em mais de meio-século, mudou o mundo, não só o Brasil. Experimentamos, hoje, uma pós-modernidade de um “admirável mundo novo”, quando os seres humanos são dispensados de pensar, de escrever e mesmo de falar. Os tablets assumem todas essas tarefas, para que homens e mulheres dediquem-se à prática de um hedonismo que reduz todas as formas de expressão humana a esquemas para a satisfação de prazeres. A ética não é mais do que o conjunto de regras induzidas pelo Marketing. Para cumpri-las, obtendo os prêmios prometidos, basta o poder do dinheiro, o que resulte de negócios lucrativos. O capitalismo financeiro tem o seu motor na ganância absoluta.

Mas voltemos ao Brasil, um Brasil que se urbanizou e industrializou tardiamente. E esses dois fenômenos, a urbanização e a industrialização mudaram radicalmente o mundo político e o papel dos políticos na exata medida em que mudaram as relações entre o Estado de Direito e o Capital. Roberto Campos foi o pai do Plano e Metas de JK, uma proposta de desenvolvimentismo internacionalizante, que abandonou as ideias e propostas da CEPAL e de Celso Furtado. Campos programou a sua implantação, baseando-se na “administração paralela” que criou. Esta não foi apenas uma solução engenhosa e alternativa, para que se pudessem apressar as ações do Plano de Metas. Ela foi principalmente a solução adequada para que se assegurasse o objetivo de exercício do poder público pelo poder privado, através da ação de técnicos desvinculados do aparelho burocrático do Estado, dotados da flexibilidade que permitiu a eles operar em nome Deste e ao mesmo tempo fazer lobby em benefício de grupos econômicos .

Depois de ter presidido o BNDES e estruturado o “Plano de Metas”, para orientação do governo Juscelino Kubitscheck, Campos criou a Consultec, empresa que faria “advocacia administrativa”, defendendo interesses e fazendo lobby para grupos multinacionais; Glycon de Paiva e Lucas Lopes juntaram-se a ele na sociedade. Ministro da Fazenda de JK, Lucas Lopes enredou-se e comprometeu-se seriamente, ao buscar vantagens escandalosas para a Hanna Minning Co., empresa da qual se tornou empregado. Como geólogo, premiado pela Sociedade Brasileira de Geologia, Glycon de Paiva aplicava tintas de argumentação técnica, camuflando as investidas do truste norte-americano. Lamente-se, mas não se poderá confirmar historicamente a certeza dogmática que alimenta o juiz Sérgio Moro, depositando no PT e em Lula toda a “podridão” das propinas que associavam o Público e o Privado.

A modernização internacionalizante ganhou fôlego e forma definitivas com os governos da ditadura, quando, não havendo mais qualquer forma de crítica aos negócios que se faziam, processou-se o milagre econômico, que concentrou a renda, a espera de que crescesse o bolo, para que, afinal e quem sabe, pudesse ele ser distribuído. As grandes empreiteiras consolidaram assim o seu monstruosamente enorme poder econômico. O despudor tornou-se consentido: o “japonesinho” do Geisel, Shigeaki Ueki, ex-presidente da estatal e que vive hoje no Texas com os seus filhos, detentor de uma das maiores fortunas do planeta. Shigeaki carregou tudo que foi possível daquela empresa, à época em que o regime militar (1964-85) mandava ainda e desmandava. Não nos esqueçamos de que o Congresso existia, embora sujeito a recessos periódicos, e assistiu a tudo isso. Um sócio menor, não muito menor.

A transformação da “rés pública” em “cosanostra” realizou-se em cenário muito apropriado para o crime: Brasília. A transferência das praias do Rio de Janeiro para o marasmo do encantamento da Capital Federal implicou na distribuição farta de regalias aos Três Poderes. Em especial, o Congresso Nacional caminhou a passos firmes para o desprestígio da imoralidade pública e notória. Jornalista que cobria as Casas do Congresso no Rio de Janeiro, Villas-Bôas é implacavelmente verdadeiro: “para exercer o mandato, com os deveres reduzidos ao mínimo de duas, três presenças semanais, intercaladas por semanas de recesso branco, os parlamentares abiscoitam vantagens que, concedidas como provisórias, perpetuaram-se”. No começo foram os gabinetes, mas que foram sendo ampliados, e com eles o empreguismo e o nepotismo. Mais adiante, negócios e acertos do período FHC, com Sergio Motta, ACM, Serra e a equipe de banqueiros negociantes e gestores da “coisa pública”, evoluiu-se para ganância da política de negócios escusos. Lula avisou que eles tinham sido feitos.

Não fez mais ou não pôde fazer. O anacronismo patife da legislação eleitoral, a começar pelas omissões canhestras da Constituição de 1988, criou os instrumentos necessários para que Brasília se transformasse na Sodoma a ser consumida pelo fogo. Em processo de velocidade crescente, a imprensa e a propaganda tornaram-se o mesmo mundo, seguindo as mesmas regras e tendo os mesmos objetivos: “(a imprensa e a propaganda) escondem as suas verdadeiras intenções comerciais e políticas, sob o papel de quem está interessado no bem comum.

A manipulação dos consumidores empresta os seus símbolos a um público estereotipado, aproveitando-se de sua legitimação: assim, funções da esfera pública são integradas na concorrência de interesses privados”. Em última instância, a união da imprensa e da propaganda passa a proferir o mesmo discurso e têm permitido atingir-se o objetivo de criação de um grande consenso ideológico. Segundo Habermas, a tarefa desse consorcio passa a ser exatamente a criação de uma engenharia do consenso.

A imagem de Vargas, botas e bombachas, em sua rede, nada tem a ver com a gente de Brasília dos tempos de hoje. Ela só pode ser relembrada com aquela outra de Lula. Lula e dona Marisa Letícia, na praia, calção quase aos joelhos, o então presidente caminha e transporta na cabeça a caixa de isopor, com suas “cervejas”. Lula consentiu, Lula negociou, cedeu, fez-se míope.

Mas a sua presença, o seu olhar, a barba, o vocabulário construído nas oficinas e nas reuniões do Sindicato, onde “tiravam” conclusões, tudo isso é mais do que a negação. Lula acusa o crime da ganância dos políticos negociantes. Enquanto eles existirem, sustentados pelo Poder Judiciário que também se corrompeu, com a troca do amor ao Direito pelo amor ao dinheiro, juristas da ganância, o Brasil estará reduzido ao clima e ares de prostíbulo.

Maria Fernanda Arruda é midiativista, escritora e colunista do Correio do Brasil.

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