Por Claudio Lovato, jornalista e escritor –
“Tem gente que vende a alma para o diabo e gosta”, ele me disse certa vez. “Gosta tanto que depois vira intermediário, tipo contato comercial do inferno”.
Ele era assim. Saía com seus ditados, suas máximas, suas sacadas pouco tempo depois de chegar ao bar, que ficava perto do jornal em que fiz minha estreia como editor. Não era preciso muito para que ele ligasse a engrenagem dos “insights”, dos quais se orgulhava com mal disfarçada modéstia: duas cervejas, alinhadas a duas doses de cachaça, e lá vinha ele.
Nós o conhecíamos como Percival Motorista. Percival, pelo que sabíamos, era de fato seu primeiro nome. “Motorista” porque (era o que se dizia) aprendeu a dirigir no quartel e depois adotou a profissão, a única que exerceu, tendo chegado (segundo se contava) a ser chofer de um governador.
“Para os canalhas, tudo é relativo”, ele disse um dia, em uma mesa em que eu estava, e um dos nossos conhecidos ficou bastante ofendido, porque, pouco antes, tinha tentado, por vias obviamente tortas, justificar o uso da tortura pela polícia em alguns casos. “Nem todo mundo que relativiza é safado, mas todo o safado relativiza”.
Um leitor compulsivo (ou, no mínimo, esforçado), que volta e meia aparecia com palavras do tipo “relativiza”.
Um filósofo subestimado pelo mundo, que só encontrava reconhecimento (ou algo próximo a isso) no bar.
Um iconoclasta da plebe, que desprezava a impostura esnobe de gente que usava palavras como “iconoclasta”.
Uma vez, ele chegou com uma pasta verde, daquelas de papelão e elástico, e tirou de dentro dela uma folha de papel ofício com uma frase escrita no computador: “Viver é bom, mas não é fácil”. Então chamou o Demétrio, dono da birosca, e perguntou se ele permitiria que o cartazete fosse afixado em algum lugar da “casa”, quem sabe no alto da prateleira dos destilados, ao lado da imagem de Nossa Senhora Aparecida. O Demétrio concordou, com sua proverbial bondade e sua infinita capacidade de compreensão das coisas que são humanas.
Como todos esperavam, ainda que jamais houvessem verbalizado algo a respeito, Percival Motorista um dia sumiu para sempre. Durante muito tempo, cada brinde vinha acompanhado de um trocadilho do tipo “Ao Percival, que era o nosso diferencial” ou “Percival, amigo meu, que nunca te fure um pneu” etc.
Até hoje, passado muito tempo, com frequência recordamos suas tiradas. E até elegemos aquela que, para nós, foi a melhor de todas: “Do fundo do meu coração vira-lata, tiro a coragem para andar de cabeça erguida, ainda que com o rabo baixo”.