Por Fernando Brito, compartilhado de O Tijolaço –
Falou-se muito no papel do escritor Mario Varga Llosa nas eleições peruanas, por ter abraçado o sobrenome de seu ex-rival Alberto Fujimori, na pessoa de sua filha Keiko, para apoiá-la contra o ‘índio’ Pedro Castillo.
Mas, em algum sopro dos ventos do altiplano andino, as partículas do que um dia foi outro grande escritor peruano é que devem estar rebrilhando com a vitória o ‘profesor‘, que fez uma campanha a partir do que ninguém via, mas que triunfou, que estão apuradas todas as urnas.
É Manuel Scorza, morto num acidente aéreo em 1983. autor de cinco novelas de uma série que contou a história do nascimento e morte das revoltas camponesas das populações indígenas dos campos e montanhas andinas do centro do país, das quais a primeira, Redoble por Rancas, tomou aqui o horrível título de Bom dia para os defuntos. Depois vieram Garabombo, o Invisível; O Cavaleiro Insone; Cantar de Agapito Robles; A Tumba do Relâmpago e A Dança Imóvel, lançado no ano de sua morte.
A crescente presença política das populações indígenas na face ocidental da América Latina, dos mapuches do Chile, passando pela Bolívia e chegando ao altiplano peruano, torna Scorza atualíssimo e é no seu segundo livro, Garabombo, o Invisível, que se encontra uma metáfora terrivelmente próxima do que se passa no país andino.
Garabombo não é invisível por mágica ou truque, mesmo sendo o romance do realismo fantástico da literatura regional. É porque, tendo ido servir ao Exército peruano em Lima, a capital do saque colonial da América espanhola, mesmo já independente, descobre que os homens do poder e do governo, física ou mentalmente brancos, simplesmente ignoram, como se não os vissem, os que vinham das origens indígenas do país.
Invisível, então, Garabombo serve-se disso para ajudar a organizar a revolta camponesa, porque não o enxergavam. E os comuneros, impedidos de se reunirem pelas autoridades, encontram um meio de se reunirem: são autorizados a construir uma escola, que quando está quase pronta, incendeia-se e os “obriga” a construir de novo, e maior. E de novo, maior e maior.
Imagem tão forte que há quase 50 anos me acompanha, desde que a li, num subúrbio carioca, por simples fome de leitura.
Pois Pedro Castillo, a surpresa das eleições peruanas, a quem não davam um tostão furado de possibilidades de vitória, passou de ilustre desconhecido a presidente eleito do Peru, o que só não se proclama oficialmente ainda porque Keiko Fujimori passou a usar a tática desesperada de impugnar 802 urnas nas quais diz que houve fraude.
Quem o colocou no segundo turno, de onde partiu para a vitória, não foi a classe média, a esquerda “moderna”: foram os ‘invisíveis’. E, dali, ele passou a representar o povão também em outras regiões do país, embora sua vitória definitiva continue a dever-se aos altiplanos, onde teve oitenta por cento ou mais dos votos.
Se conseguirá manter-se no governo é outra história. A correspondente de O Globo para a América Latina, ácida critica da esquerda, diz hoje que Em clima de pânico, elite peruana resiste a reconhecer sua vitória, embora tenha passado décadas ignorando esta força que vem sobrevivendo há um século no Peru desde a Apra – Aliança Peruana Revolucionária da América- criada em 1924 por Haya de La Torre.