Por Lucas Malaspina e Marcos Doudtchitzky, compartilhado de Outras Palavras –
Pedro Castillo vencerá apesar de demonizado pela mídia e ausente, até há pouco, das redes sociais. Sintonia com nova geração política, e com sentimento anti-establishment das maiorias, produziu resultado – que diz algo à América Latina
Por Lucas Malaspina e Marcos Doudtchitzky, em Nueva Sociedad| Tradução: Antonio Martins
ATUALIZAÇÃO às 7h40 de 9/6:
A última tabulação oficial de votos, feita pelo Órgão Nacional de Processos Eleitorais (ONPE) do Peru, não deixa margem a dúvidas. Pedro Castillo venceu as eleições, com 50,2% contra 49,8% de Keiko Fujimori. A contagem dos votos do exterior terminou. As poucas urnas que resta apurar (todas de regiões remotas do Peru) não podem alterar o resultado. Vêm agora as duras batalhas de tomar posse e — ainda mais difícil e fascinante — governar. Mas está de novo demonstrado: o neoliberalismo pode ser batido na América Latina, inclusive com um candidato improvável… (A.M.)
Pedro Castillo, o professor sindicalista que está a prestes a vencer as eleições presidenciais peruanas, surpreendeu em todos os níveis. Até então desconhecido do grande público, o candidato do partido Peru Libre prepara-se para derrotar Keiko Fujimori, provavelmente a política mais conhecida da atualidade – para o bem e para o mal – do país. Uma das facetas mais surpreendentes de Castillo está ligada à sua presença (ou, na verdade, sua ausência) nas redes sociais. Quando entrou na votação, ele tinha apenas 3.000 seguidores no Twitter e atualmente tem 79.000 contra mais de um milhão de Keiko Fujimori. Ironicamente, ele poderia ter sido inicialmente chamado de “o candidato sem likes”. Mas em que medida foi esse o caso? Como é possível que no século XXI – quando os consultores de comunicação enfatizam constantemente a importância de uma estratégia política integrada nas diferentes plataformas – um candidato esteja perto de conquistar a presidência nessas condições? Em última análise, qual é a distância entre a mídia social e a “realidade”?
A política baseia-se em acordos. Assim, um quadro político pode reunir os votos necessários para vencer e até mesmo governar – e estar fora das redes sociais – se tiver apoio político suficiente. O ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica nunca teve um perfil oficial . Alberto Fernández, atual presidente da Argentina, não tinha mais de 30 mil seguidores no Twitter quando se soube que seria ele quem enfrentaria o então presidente Mauricio Macri. No caso de Alberto Fernández (hoje com 2 milhões de seguidores) é evidente que ele recebeu grande parte desse novo público graças a Cristina Fernández de Kirchner, já que alcançou essa posição alavancado pela estrutura de militância construída pelo atual vice-presidente da Argentina. O caso de Castillo é completamente diferente, pois nenhuma estrutura previamente consolidada e unificada cedeu sua capacidade de ampliação para chegar às urnas. A microestrutura do Peru Libre era insignificante em face de tal desafio. Tornou-se pertinente fazer duas perguntas. Por um lado, que elementos podemos levar em conta para explicar tal singularidade? E, por outro lado, o que pode ensinar essa experiência atípica da comunicação digital, que em tão pouco tempo passou por desafios tão intensos?
#MerinoRenuncia e a «Geração Bicentenária»
Seguindo o costume de Cronos, o sistema político peruano alimenta-se de seus próprios filhos. Desde que os desdobramentos da Operação Lava Jato chegaram ao Peru, nenhum ex-presidente ficou de pé. Acusações de corrupção varreram todos eles. A crise política também levou ao nascimento, em novembro de 2020, da chamada “Geração Bicentenária”, como tem sido chamado o movimento que saiu às ruas em defesa da democracia [Leia mais em Outras Palavras: 1 2 3]. Ao questionar as graves desigualdades enfrentadas pela nação andina, a “Geração Bicentenário” também respondeu à decisão do Congresso de retirar Martín Vizcarra (vice e posterior sucessor de Pedro Pablo Kuczynski) do poder. O consultor político argentino Mario Riorda , chamou atenção para o fato histórico por ocorrer “no país com o maior descontentamento político da região”. Com a hashtag #MerinoRenuncia como emblema , os jovens inundaram o Facebook, Instagram e TikTok.
O enorme potencial da Geração Bicentenário também teve expressão no Twitter, como observou Julián Macías Tovar , analista de redes sociais vinculado ao Podemos (Espanha) e chefe da Pandemia Digital . Macías Tovar conseguiu exibir a monstruosa superioridade das comunidades que forçaram a queda do governo interino de Manuel Merino nas conversaçõs do Twitter, revelando o poder do uso de certas hashtags (#MerinoNoEsMiPresidente com mais de 370.000 tweets e #MerinoNoMeRepresenta com mais de 130.000).
Do Peru rural (desconectado?) à bolha de Lima
Poucos meses depois das mobilizações que expulsaram Merino, ocorreu o primeiro turno presidencial que colocou Pedro Castillo e Keiko Fujimori na disputa final. Para Giovanna Peñaflor, analista política peruana e diretora do Imasen, o fenômeno de Pedro Castillo está associado a um catalisador político peculiar vindo do Sul peruano: «É preciso destacar que o Sul tem se manifestado de forma diferente do resto do país em cada um processo eleitoral (…) É como uma força que questiona oestablishmentou o que se considera o status quo. Em outros momentos, isso favoreceu [os ex-presidente] Toledo e Humala; hoje, é Castillo. É preciso lembrar que o terrorismo ocorreu com maior força no sul e lá está instalada a mineração em grande escala, uma das fontes de maior geração de riquezas do Peru. Onde a mineração grande está presente, Castillo teve uma votação maior. No sul, fica clara a incapacidade dos governos de integrar a atividade — exceto em Arequipa, que de alguma forma consegue se inserir no desenvolvimento com a questão extrativista.
Ao se analisar um fenômeno político produzido naquela região do país, especialmente quando não foi percebido pela intelligentziado país concentrada em Lima, emerge o seguinte. Dado que a vantagem de Keiko Fujimori está fundamentalmente em Lima e a de Castillo no interior, isso pode estar relacionado à menor conectividade das regiões em que Castillo se fortaleceu? Ou simplesmente, como já foi apontado em outros casos internacionais, tem a ver com o fato de que nas redes nos alimentamos em bolhas de usuários que pensam como nós?
Por um lado, deve-se destacar que na região metropolitana de Lima, entre a população de 6 anos ou mais de idade, mais de 80% estão conectados à internet de suas residências, enquanto no restante do país esse percentual de conexão mal ultrapassa os 40%. Dos que acessam, sabe-se que 90% o fazem pelo celular. Por outro lado, de acordo com um estudo da IPSOS de 2020, “13,2 milhões de peruanos conectados são usuários de redes sociais”. Nessa massa, a penetração é liderada pelo Facebook com 94%, seguido pelo WhatsApp com 86%, Instagram com 60%, Twitter com 29% e TikTok com 18%.
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Ativismo digital e ação «de baixo»
Em um artigo muito ilustrativo , o correspondente Jimena Ledgard afirma que a aparição surpresa de Castillo em primeiro lugar no primeiro turno “levou os comentaristas de Lima a declarar que ‘o Peru sem internet falou’, oferecendo assim uma explicação conveniente para a vitória inesperada. Mas uma conversa com os apoiadores Castillo na zona rural e entre os trabalhadores urbanos revela uma história mais complexa. Ledgard argumenta que “alguns jovens rurais peruanos desafiam ainda mais o estereótipo de que suas regiões são fundamentalmente desconectadas. A hashtag #PedroCastilloPresidente tem mais de 7,7 milhões de visualizações no TikTok , com muitos dos criadores vindos de áreas rurais dos Andes. E embora Castillo não tenha uma página validada no Facebook, dezenas de grupos nesta rede social surgiram organicamente para expressar seu apoio ao candidato.
Tanto Ledgard quanto Vivas apontam para a importância dos grupos pró-Castillo no Facebook. Devido à sua dinâmica, os grupos do Facebook podem ser públicos ou privados. Entre eles estão Pedro Castillo Presidente 2021 (268.000 membros), Pedro Castillo Presidente do Bicentenário (59.000 membros), Pedro Castillo no Segundo turno (62.000 membros), Todos com Pedro Castillo resgatando Peru mais Saúde e Educação (43.300 membros) ou Pedro Castillo “Presidente dos Pobres” (43.400 membros), incluindo pelo menos dez grupos de várias dezenas de milhares de membros. Vivas ressalta que esses grupos começaram a ficar agitados pouco antes do primeiro turno. Em face da votação, muitos deles ultrapassam 800, 900 e até 1.700 publicações diárias.
De acordo com Ledgard, os grupos do Facebook por região também são muito ativos. Por exemplo, Pedro Castillo Presidente- Região de Cusco(39.400 membros). “Nossa abordagem é descentralizar a política. É por isso que deixamos as regiões falarem por si. Isso inclui estratégias de comunicação. Damos algumas orientações aos adeptos de cada local, mas deixamos que façam os seus próprios spots ”, explicou o cientista político Franco Pomalaya Neyra a Legard. Pomalaya Neyra faz parte da equipe de networking do Peru Libre e é responsável pelas transmissões ao vivo, vindas do Coletivo Dignidad .
A grande questão é: como surgiram essas comunidades ígneas que instalaram o professor de esquerda “de baixo” na luta eleitoral? A crônica de Fernando Vivas oferece algumas pistas muito valiosas para entender esse processo a partir do registro das mudanças de nome de vários desses grupos do Facebook. «O grupo Pedro Castillo Presidente acabou de fazer a renomeação castillista a 12 de Abril. Antes se chamava Folclore Peruano, e antes ainda, Programa Nacional Juntos Cadastre seu Filho Menor para o Bõnus de 200 soles. Esse percurso pode dar uma ideia dos motivos comuns que se sobrepõem em poucos meses: o impacto da pandemia e da crise, o cultivo do folclore e suas recompensas de “identidade”, e o afeto político em um contexto eleitoral polarizado (. ..) O grupo Pedro Castillo Presidente 2021 foi denominado assim no dia 9 de fevereiro, mas a partir de outro grupo criado em 2017 com o nome de Férias para Professores Peru. Não é difícil inferir, neste caso, o entusiasmo dos professores com um candidato de origem e uma agenda de professor ”.
Vivas continua: «Comparamos a história dos grupos de Castillo com a dos grupos maiores de apoio a Keiko Fujimori e vimos que, em todos os casos, nasceram associados a ela (…) Por outro lado, com Castillo é comum a reconversão, ou dos membros, ou pelo menos dos administradores do grupo, que partem de interesses alheios à política. Aqui está o fenômeno da novidade do outsider deixando uma marca perfeitamente legível nas redes ». Vivas destaca que outros grupos pró-Castillo também surgiram com denominações de apoio a outros líderes políticos como Francisco Sagasti ou Daniel Urresti e alerta para essa uma metabolização hiper-dinâmica do processo de conscientização da “Geração do Bicentenário”.
Nos grupos do Facebook, os apoiadores do Castillo participam de discussões políticas, compartilham vídeos, artigos, memes e também se entrelaçam intimamente por meio do WhatsApp. Dessa forma, os grupos do Facebook tornam-se a ponta do iceberg de uma rede muito mais próxima e indetectável. A importância dos grupos de WhatsApp (cujo limite inalterável é de 256 membros), já foi vista na campanha de Jair Bolsonaro, com a sutil diferença que nenhuma empresa ou qualquer mecanismo malicioso de envio artificial de mensagens operou aqui. Para conhecer a atuação desses grupos, Vivas imergiu um colaborador anônimo no WhatsApp. Após a investigação, ele esclarece que nos grupos do WhatsApp “encontramos mensagens mais íntimas e emocionais, destacadas com emoticons; além de mais interação e conversa. As coordenações para recrutar representantes, por exemplo, passam mais por esses grupos. Nos grupos do Facebook, a propaganda prevalece. Além disso, argumenta que “se o confronto e a polarização prevalecem no Twitter, aqui predominam as mensagens de adesão”, e destaca os seguintes temas: “rejeição do “terruqueo” [gíria peruana para “demonização”] de Castillo, conservadorismo em matéria de direitos (um apoiador lamenta que a candidata Verónika Mendoza [de esquerda alternativa urbana] apoie o casamento gay) e as poucas menções de Vladimir Cerrón (fundador do Peru Libre e governador de Junín acusado de corrupção) ».
Por tudo isso, o pesquisador da PUCP, Eduardo Mansilla Villanueva, argumenta em seu texto: “As redes são o Peru. Basta saber olhar para elas». Quando « muitos repetem o mantra segundo o qual “o Peru não são as redes”, o que querem dizer é que o Peru não é a rede deles, aquela que lhes dizia todos os dias que havia muitos conhecidos entusiasmados negando a realidade.
Um ambiente propício as fake news
As eleições geralmente se desenvolvem em torno de uma pergunta. A luta para fazer essa pergunta na maioria das vezes define o vencedor. Bem, é sabido que as eleições não são definidas por grupos radicais. A chave está geralmente em uma porcentagem que decide seu voto mais perto da eleição. Esse é um público que tende a combinar suas posições de maneiras mais difíceis de captar em estudos pré-eleitorais. E é justamente para mobilizar esse setor que é fundamental definir o quadro, o que está em jogo na votação.
Para tentar inclinar a balança a seu favor, Keiko Fujimori teve um enorme dispositivo de comunicação digital. Como explica Héctor Venegas Díaz , do Politlogos Digitales: “O fujimorismo (…) tem experiência na coordenação de pequenas agências com atores políticos ou com a campanha central. Esses veículos ou páginas satélites que também servem para colocar conteúdo podem ser mais bem recebidos do que aparecer em uma fanpage de Keiko Fujimori ou que tenha o nome da festa. Todo um gigantesco ecossistema – liderado pela grande mídia peruana – brandia em favor de Keiko uma campanha “contra o comunismo” que, segundo ela, Castillo representa, reforçando a imagem de que um governo do Peru Livre seria “ditatorial como Venezuela e Cuba”.
As fake news têm como objetivo definir o segmento intermediário dos indecisos. A campanha do Peru não pode ser exceção. Embora depois se espalhem por todas as redes sociais, o Twitter é o terreno mais favorável para a divulgação de notícias falsas, dada sua maior tolerância aos bots e seu controle praticamente nulo sobre a veracidade dos perfis. Quando Castillo venceu no primeiro turno, ele conseguiu 50.000 menções , seguidas por 35.000 menções de López Aliaga e 22.000 menções de Keiko. Em suma, como destacou o especialista em comunicação política Ignacio Ramírez , “a distribuição de opiniões na sociedade, que é o que importa, não se reflete no Twitter. O Twitter não representa nada, exceto ele mesmo. Nada mais nada menos.
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Sob o guarda-chuva do anti-fujimoriismo
Desde o primeiro turno, a equipe de imprensa de Castillo conseguiu formar uma equipe de networking. O principal desafio foi centralizar a palavra e a imagem do Castillo em canais oficiais reconhecidos pelo maior número possível de usuários, para evitar dispersão e confusão.
Apesar disso, a reta final não foi sem contratempos. Os jornalistas Diego Quispe e David Pereda argumentam que “a campanha de Castillo teve tropeços e desordem em seus sites oficiais. No dia 14 de maio, o candidato postou no Twitter uma ilustração com a frase “Antes de um ditador, agora professor”. A postagem foi interpretada literalmente como dizendo que o professor de Cajamarca é um totalitário reabilitado. Apesar de seu crescimento exponencial no Facebook e no Twitter, Castillo não explora o Instagram nem possui um TikTok oficial. Para Quispe e Pereda, isso “mostra seu sigilo eleitoral”.
O publicitário peruano Milton Vela, do Café Taipa, afirma na mesma reportagem que no Fuerza Popular, a frente que apoiou Fujimori, havia “mais articulação nas redes sociais do que no Peru Libre. Mas a campanha da candidata deparou-se com a rejeição ao fujimorismo e, em especial, uma organização espontânea mais articulada, por ter jovens com alta cultura digital e que se mobilizam”. É aí que residiu a verdadeira força de Castillo antes do segundo turno, em 6 de junho: nas massivas ações de rua e digitais que acontecem na última semana da campanha sob os slogans #KeikoNoVa ou # FujimoriNuncaMas.
O caso de Castillo mostra claramente a importância de lembrar que, como afirma Eduardo Mansilla Villanueva, as redes sociais são, antes de tudo, redes. Ou seja, elas não são simplesmente mídias sociais (como alguns as chamam), mas fundamentalmente padrões de interação moldados por padrões comuns de sociabilidade. E, nesse sentido, para um grande número de segmentos sociodemográficos (no Peru e em muitos outros países), a forma de expressão e conexão que o Facebook privilegia, bem como a penetração que proporciona, tem a capacidade de oferecer ainda um amostra muito maior, processos significativos que se aninham dentro do grupo constituinte do que os dados mais abertos e facilmente obtidos no Twitter.
O monitoramento de comunidades no Facebook (especialmente restrito devido ao Regulamento Geral de Proteção de Dados e o escândalo Cambridge Analytica), bem como a investigação de conversas no WhatsApp (muito difícil devido à sua obscuridade e privacidade), podem ser, apesar de sua complexidade, tão ou mais útil para entender o que está acontecendo em grandes segmentos da opinião pública do que a análise cada vez mais difundida dos dados do Twitter.