Por Maíra Mathias e Raquel Torres, compartilhado de Outras Palavras –
Maior pesquisa sobre a covid-19 no país revela: para atingir “imunidade de rebanho” de que fala Bolsonaro, 120 mil morreriam, só na cidade de S.Paulo. Quase todos nas periferias. Leia também: porteira do ministério da Saúde aberta ao Centrão
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O VERDADEIRO 7×1
Saíram os primeiros resultados do aguardado levantamento nacional sobre a covid-19, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas. Os pesquisadores testaram a presença de anticorpos em 25 mil moradores de 133 municípios espalhados em todas as regiões. Em um conjunto de 90 deles (incluindo 21 capitais), onde foi possível realizar mais de 200 testes, os resultados indicam que 1,4% da população já teve o novo coronavírus. Essas cidades concentram 25,6% dos brasileiros (54 milhões de pessoas), entre os quais 760 mil teriam sido infectadas. Na época dos testes, os resultados oficiais contavam 104,7 mil casos registrados no conjunto dessas 90 cidades. Ou seja: segundo o levantamento, nesses locais há sete vezes mais infectados do que o número oficial demonstra.
Isso não significa que 1,4% da população do país inteiro tenha sido contaminada, como ressaltam os pesquisadores no relatório: “Os resultados dessas 90 cidades não devem ser extrapolados para todo o país, nem usados para estimar o número absoluto de casos no Brasil, pois são cidades populosas, com circulação intensa de pessoas e que concentram serviços de saúde. A dinâmica da pandemia, portanto, pode ser distinta da observada em cidades pequenas ou em áreas rurais”. De todo modo, o levantamento escancara a subnotificação que já vinha sendo projetada em vários modelos epidemiológicos e mostra que “a contagem de casos de infecção por coronavírus no Brasil agora deve ser feita em milhões, e não mais em milhares”. Pesquisas populacionais, diz o texto, são a única forma de entender o que está debaixo do topo do iceberg. Só São Paulo deve ter 380 mil moradores com anticorpos, o que é mais do que o número de casos registrados no país inteiro atualmente.
É impressionante a diferença encontrada entre as regiões. Das 15 cidades com maior prevalência, 11 estão no Norte, evidenciando que, por lá, tanto a situação epidemiológica como a subnotificação são piores que no restante do país. No topo da lista está Breves, no Pará, que já teve quase 25% da população infectada (seriam 25 mil pessoas). Em Belém, essa taxa foi de 15,1%; em Manaus, 12,5%; em Fortaleza, 8,7%; em São Paulo, 3,1%; no Rio, 2,2%. No Sul, só Florianópolis teve prevalência maior que 0,5%. Já no Centro-Oeste, o número de testes realizados não foi suficiente para encontrar nenhum caso positivo, embora já haja casos e mortes notificados.
“Essas diferenças entre as cidades demonstram que existem várias epidemias num único país. Enquanto algumas cidades apresentam resultados altos, comparáveis aos de Nova York (EUA) e da Espanha, outras apresentam resultados baixos, comparáveis a outros países da América Latina, por exemplo”, escrevem os pesquisadores. É bom reiterar que os resultados se referem ao número de casos, e não ao de mortes – a subnotificação delas é um capítulo à parte. Aliás, observamos que as cidades com altas prevalências de infectados não são as que têm as mais altas taxas de mortes confirmadas até agora, o que é algo para se tentar entender.
Conhecer a prevalência do vírus – o que se faz muito bem com pesquisas amostrais como a da UFPel – é importantíssimo para tomar decisões sobre políticas públicas, mas não é suficiente para conter os surtos. Isolar doentes e rastrear contatos tem se mostrado essencial nos países com boas respostas até o momento. Na verdade, o que se faz nas quarentenas é tentar isolar todos justamente diante da incapacidade de isolar só os contaminados. O diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, deu uma mensagem direta para o Brasil ontem ao falar disso. Explicou que as quarentenas não devem ser eternas, mas servem justamente para os países conseguirem parar a duras penas o avanço do vírus e ganharem tempo enquanto montam suas estratégias de testagem e rastreamento de contatos: “Sem essa capacidade, não há alternativa que não o confinamento. A transmissão não vai embora sozinha“.
Ir embora sozinha, até que ela vai… Mas ao custo de muitas vidas e só quando todo mundo se infectar – como quer Jair Bolsonaro. O que fica muito evidente na pesquisa da UFPel é que a maior parte das 90 cidades analisadas ainda está muito longe da ‘imunidade de rebanho’ defendida pelo presidente. Se São Paulo já tem mais de seis mil mortes com apenas 3,1% da população infectada, imaginem quantas mais serão necessárias para que o vírus atinja 70% em um curto prazo.
ESPERANDO O “LIMITE”
Mesmo na parte visível do iceberg, os números brasileiros não param de escancarar as falhas grosseiras do governo em relação à resposta. Já são três meses de covid-19 no país. Os casos conhecidos chegaram a 374.898. Ontem, foram mais 807 mortes, levando o total a 23,473 mil. Estamos há dois dias seguidos ultrapassando os Estados Unidos em relação ao número de mortes em 24 horas.
Se é impossível salvar vidas sem atendimento médico, mesmo os pacientes que conseguem assistência têm um destino incerto. Nas UTIs brasileiras, morre-se muito: só um terço dos pacientes entubados se recupera. A informação é dada por um levantamento do Projeto UTIs Brasileiras, da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, feilto com coleta de dados em 13,6 mil leitos em 450 hospitais. A mortalidade de 66%, observada tanto nos hospitais públicos como nos particulares, é bem maior do que a de países como o Reino Unido (42%) e Holanda (44%). Os números isoladamente não permitem estabelecer os motivos. Mas, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, provavelmente tem a ver com precariedades nos serviços e com o uso indiscriminado de medicamentos que podem prejudicar desfechos, como a cloroquina.
MEDO DO BRASIL
Um minuto antes da meia noite de hoje, os Estados Unidos vão começar a barrar a entrada de pessoas que estiveram no Brasil nos últimos 14 dias. A data foi antecipada pela Casa Branca ‘sem explicações’. Mas quem olha para os números brasileiros entende a pressa. A decisão havia sido anunciada no domingo e, a princípio, começaria a valer a partir da próxima quinta.
Por aqui, a notícia é claramente constrangedora para um governo que busca se alinhar a Donald Trump em tudo – e potencialmente negativa para a base bolsonarista que leva bandeiras dos EUA para suas manifestações. A ordem no Planalto é fugir de comentários a respeito e, quando for impossível, minimizar.
Quem também está com medo do Brasil é o Uruguai, país menos afetado pela pandemia na América do Sul. Ontem, o presidente Luiz Lacalle anunciou o reforço de algumas medidas de controle sanitário na fronteira depois que Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, viu seus números piorarem, com duas mortes no fim de semana. O lado uruguaio da fronteira passará por 1,1 mil testes, teve a volta às aulas, marcado para acontecer 1º de junho, suspenso. E o governo uruguaio já determinou o aumento de leitos de UTI por lá.
Questionado por uma apoiadora sobre a imagem negativa do Brasil no exterior, Bolsonaro respondeu ontem que “a imprensa mundial é de esquerda” e que “Trump sofre muito nos Estados Unidos também”. O presidente brasileiro foi criticado pelo colunista-chefe para assuntos internacionais do Financial Times, um jornal liberal. “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o país para um desastre”, constatou Gideon Rachman. No domingo, o conservador The Telegraph alertou que Bolsonaro pode ficar conhecido como “o homem que quebrou o Brasil”.
SEM IMPRENSA
“Escória! Lixos! Ratos! Ratazanas! Bolsonaro até 2050! Imprensa podre! Comunistas!”. Cresceu ontem a agressividade dos apoiadores do presidente em relação aos jornalistas que cobrem as aparições do presidente diante de sua claque no Palácio do Alvorada. Quem começou tudo, segundo o relato da Folha, foi o próprio presidente. “No dia que vocês tiverem compromisso com a verdade, eu falo com vocês de novo“, disse ele, pouco antes de os xingamentos do dia começaram. O problema maior é que foram retiradas as duas grades que separavam jornalistas e bolsonaristas no local, deixando um espaço entre eles. Agora, há apenas uma das grades e fita de contenção. Ontem, foi necessária a intervenção da Polícia Militar.
Com a falta de segurança, a Folha, o Globo, a Band e o site Metrópolesdecidiram suspender a cobertura jornalística na porta do Palácio. Nos últimos tempos, Bolsonaro já tinha deixado de responder às perguntas dos repórteres.
Em nota, a Associação Brasileira de Imprensa elogiou a decisão; o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e a Federação Nacional dos Jornalistas cobraram ações de proteção aos profissionais por parte do GSI e da Secom.
O ESCOLHIDO PELO CENTRÃO
O médico Marcelo Campos Oliveira deve ser nomeado nos próximos dias como secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde. A escolha partiu de dois partidos do Centrão – PP e PL – que cobiçam essa área responsável por liberar recursos para custeio de leitos em hospitais de todo o país. Durante a pandemia, a secretaria já autorizou R$ 911,4 milhões para o funcionamento, por 90 dias, de 6.344 de UTIs dedicadas à covid.
De acordo com a Folha, o PL ainda tenta emplacar um nome para a Secretaria de Vigilância em Saúde. Wellington Roberto, líder do partido, teria predileção por “um aliado da Paraíba”. Já segundo o Estadão, a secretaria seria poupada pelo Planalto, a pedido de Eduardo Pazuello – ao menos por enquanto.
E o Centrão tem quadros que são pau para toda a obra… O advogado Tiago Pontes Queiroz trabalhou no Ministério da Saúde durante a gestão de Ricardo Barros (PP), no governo de Michel Temer. Agora, ele vai assumir a Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional. O órgão tem verba autorizada de R$ 17,2 bilhões.
MAIS MILITARES
Outros 20 militares devem ser nomeados por Pazuello nos próximos dias, num total de mais ou menos 40 indicações feitas pelo general desde que pisou no Ministério da Saúde para tutelar Nelson Teich. A nova enxurrada de fardados deve receber cargos na Secretaria-Executiva. Mas o ministro interino estaria estudando nomear um militar para o comando da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, área que analisa, por exemplo, evidências científicas sobre uso da cloroquina contra a covid-19. A SCTIE está sem comando desde a última sexta-feira (21).
FALANDO EM CLOROQUINA…
O Ministério da Saúde deu mais mostras de que, nessa gestão, sua última preocupação é com o bem-estar dos brasileiros. Ontem, a pasta confirmou que não vai fazer nenhuma alteração na nota técnica sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina. O questionamento, feito pela imprensa, veio depois do importante anúncio feito pela Organização Mundial de Saúde que decidiu, por precaução, suspender seu teste com a hidroxicloroquina.
O anúncio foi feito pelo diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, no começo da tarde e é consequência direta daquele grande estudo publicado pela Lancet que, depois de observar 96 mil pacientes com coronavírus, concluiu que quem tomou cloroquina e hidroxicloroquina não teve benefícios no tratamento da covid – e, pior: teve maior risco de arritmia cardíaca e morte do que quem não tomou.
“Estamos muito tranquilos e serenos em relação a nossa orientação, a despeito de qualquer entidade internacional cancelar seus estudos com a medicação”, contrapôs Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde. Para ela, o estudo da Lancet não “entra no critério de um estudo metodologicamente aceitável para servir de referência para nenhum país” por não se tratar de um ensaio clínico, mas de uma pesquisa observacional. A secretária prefere jogar a cautela pela janela a ferir o que chama de “autonomia médica”. Além disso, afirmou que tem recebido “informações” de planos de saúde como Unimed e Prevent Sênior sobre a “eficácia” da cloroquina no tratamento da covid-19.
Ao secretário-executivo do Ministério da Saúde falta até o verniz necessário para fingir que a pasta sabe o que está fazendo. Para o coronel Antônio Élcio Franco, o Brasil tem experiência na administração de cloroquina para “várias viroses” – o medicamento é usado para malária, doença causada não por um vírus, mas um protozoário… “Meu filho, por exemplo, pegou malária esse ano e tomou cloroquina. Eu participei de uma missão em Angola em 1996 e tomei a mefloquina que tem o mesmo princípio durante seis meses ininterruptos, diariamente”, disse à guisa de argumento na coletiva de imprensa.
A propósito: está prometida para junho a divulgação dos resultados do estudo clínico randomizado feito pela Coalizão Covid-19 com 1,1 mil pacientes no Brasil. Em duas semanas, saem os resultados do estudo da Fiocruz feito em Manaus com 250 doentes. Ambos já estão avançados e não há por que interrompê-los depois do anúncio da OMS. Mas seguindo o princípio da precaução, a Fiocruz resolveu parar outro estudo, feito com pacientes que apresentam sintomas leves da covid-19 e são medicados com cloroquina.
O IMPASSE DOS LEITOS
O Ministério da Saúde divulgou ontem novas orientações a respeito da construção de hospitais de campanha. Como dissemos na semana passada, quando a pasta apresentou as diretrizes para secretários estaduais e municipais de saúde, a orientação agora é que essas estruturas temporárias sejam a última opção do gestor, depois de readequação das unidades existentes e contratação de leitos no setor privado.
Mas a solução do problema dos leitos vai muito além dessas regras – e o Ministério patina no levantamento de informações essenciais também para a calibragem da política de isolamento social. No início de abril, a pasta publicou uma portaria que obrigava hospitais a informarem sobre internações de pacientes com o novo coronavírus. A promessa era que, antes da Páscoa, os dados passassem a ser divulgados diariamente. Depois, foi renovada no começo de maio. Mas até hoje, nada.
Ontem, o G1 cobrou dos representantes do Ministério esses dados. Ouviu da secretária substituta de Atenção à Saúde uma explicação que leva à conclusão de que, quase dois meses depois da edição da portaria, o Ministério não conseguiu fazer valer a regra. Dos hospitais que têm leitos de UTI, apenas 611 de um universo de 1.322 enviaram informações ao governo. O descumprimento da regra pode acarretar multas que vão de R$ 75 mil a R$ 1,5 milhão. Mas, apesar da realidade brasileira, a pasta parece não ter pressa.
Para complicar ainda mais, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) já tem um posicionamento sobre a requisição de leitos privados por gestores públicos para a formação de uma fila única em que todos os pacientes sejam atendidos enquanto houver vagas, independente de terem plano de saúde ou não. E ele é contrário à ideia. A agência reguladora colocou em primeiro lugar a saúde financeira das empresas para chegar a essa conclusão. De acordo com a nota técnica da diretoria de Desenvolvimento Social da ANS, os consumidores de planos seriam lesados caso precisassem de internação e precisassem enfrentar uma fila única. Isso poderia fazer com que deixassem de pagar os convênios o que, por sua vez, atingiria as empresas. Enquanto a agência projeta consequências no futuro, em várias cidades o presente já é sombrio. Essa nota técnica ainda precisa ser aprovada pela diretoria colegiada da agência.
E é hoje a votação no Senado dos projetos que preveem o uso compulsório de leitos privados pelo SUS. A sessão está marcada para as 16h.
PELO ARQUIVAMENTO
Aconteceu ontem a posse do novo titular da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Depois de quatro anos de excelentes serviços prestados, saiu a subprocuradora Deborah Duprat. No seu lugar, entrou Carlos Vilhena, indicado pelo procurador-geral Augusto Aras e aprovado por unanimidade no Conselho Superior do Ministério Público. A cerimônia de transmissão do cargo acontecia normalmente. Eis que Jair Bolsonaro se colocou no meio do caminho.
O presidente acompanhava a solenidade do Palácio do Planalto. Quando lhe foi passada a palavra, já no fim da posse, Bolsonaro se convidou para ir à sede da PGR “apertar a mão” do novo subprocurador. Aras, que é responsável por apresentar (ou não) denúncia contra Bolsonaro no caso da interferência na Polícia Federal, aceitou. “Estaremos esperando vossa excelência com a alegria de sempre“, respondeu o procurador-geral. O encontro durou cerca de dez minutos e não foi acompanhado pela imprensa.
A visita surpresa foi interpretada no Supremo Tribunal Federal como um novo ato de pressão do presidente sobre uma instituição que pode impor limites a sua atuação. Alguns ministros ouvidos pela Folha compararam o episódio à reunião surpresa pedida por Bolsonaro para Dias Toffoli, ocasião em que o presidente levou a tiracolo representantes de entidades empresariais que pressionaram pela reabertura econômica.
“Na visão de ministros, o gesto ocorre no momento mais importante para definição do futuro de Aras, seja para seguir no cargo, seja para alçar voos mais altos e ser indicado, por exemplo, a uma vaga no STF. O entendimento é que a atuação do PGR no inquérito contra Bolsonaro será um divisor de águas na relação com o presidente. E apenas o arquivamento do inquérito deixaria Bolsonaro satisfeito com o desempenho de Aras à frente da instituição”, diz a reportagem.
No final do dia, Jair Bolsonaro divulgou uma nota pública em que pede pelo arquivamento do inquérito. O texto foi escrito por sugestão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo. “É momento de todos se unirem. Para tanto, devemos atuar para termos uma verdadeira independência e harmonia entre as instituições da República, com respeito mútuo”, diz a nota. O presidente planeja ainda ligar para Toffoli e dar explicações sobre a fala de seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, que afirmou que, por ele, os ministros do Supremo iriam todos para a cadeia.
Enquanto isso, na PGR, alguns procuradores entendem que a gravação da reunião ministerial do dia 22 de abril fornece elementos para uma denúncia criminal contra Bolsonaro. Mas ninguém se arrisca a dar um palpite sobre qual será a decisão de Aras, considerado pelos colegas um “outsider” por, antes da nomeação, não ser muito conhecido nos altos círculos do MPF. Mas os procuradores também acreditam que o presidente acabará sendo denunciado ao Supremo. “Se o Aras não fizer nada, algum governador vai entrar com queixa-crime, por meio de uma ação penal privada ou algo do tipo”, afirmou ao Valor um membro da PGR.
NO TSE
Ontem, Luís Roberto Barroso tomou posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ministro do Supremo fez um discurso cheio de recados para o governo federal. Segundo ele, “o ataque destrutivo às instituições, a pretexto de salvá-las, depurá-las ou expurgá-las” já provocou “duas longas ditaduras” na história brasileira. “É preciso armar o povo com educação, cultura e ciência”, disse, em clara referência à sanha armamentista demonstrada pelo presidente no vídeo do dia 22 de abril.
No TSE, estão oito ações que pedem a cassação dos mandatos e a inegibilidade de Bolsonaro e Hamilton Mourão. Duas delas, apresentadas por Guilherme Boulos e Marina Silva, devem ser pautadas por Barroso. Elas versam sobre um ataque hacker à página do Facebook “Mulheres Unidas contra Bolsonaro” que foi alterada por criminosos para “Mulheres com Bolsonaro #17” e notam que, após a ação, então candidato compartilhou um print da página e agradeceu a consideração das “mulheres de todo o Brasil”. Para o ministro Og Fernandes, relator da ação, não há provas de que Bolsonaro participou da autoria ou sabia do ataque cibernético. As seis ações restantes também são relatadas por Fernandes, que ainda não liberou nenhum parecer.
FORTE RESISTÊNCIA
Os ministros do STF só concederam 6% dos habeas corpusde presos que recorreram para sair da cadeira durante a pandemia, de acordo com um levantamento feito pela Folha. Foram tratados com rigor até mesmo casos em que foram apresentados atestados médicos comprovando riscos à saúde dos detentos. Isso mostra que o Supremo está deixando a análise desses pedidos para os juízes e tribunais de instâncias inferiores, contrariando as sugestões do Conselho Nacional de Justiça para conter os surtos nos presídios.
E por falar em STF, o teste do presidente Dias Toffoli para o novo coronavírus deu negativo. Vai ser refeito.
SOBRE AS OPERAÇÕES
Já falamos aqui sobre como as operações policiais em favelas no Rio não estão em quarentena, e sobre as mortes e o terror que têm sido provocados. Na sexta, o Ministério Público Federal pediu ao diretor-geral da Polícia Federal, Rolando Alexandre de Souza, que a polícia faça operações apenas em “casos de extrema urgência”, embora não esteja claro que tipo de caso configuraria essa exceção. A 7ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que cuida do controle externo da atividade policial, já tinha cobrado informações da PF sobre a operação em que um adolescente de 14 anos foi morto na casa da família onde estava.
Por fim, o governador Wilson Witzel (que foi eleito prometendo ‘atirar na cabecinha’ de supostos ‘bandidos’), foi levado a selar um acordo com entidades de direitos humanos, definindo que as operações não vão poder ser realizadas durante a pandemia, ou “pelo menos terão que ser evitadas”, segundo o Globo.
A propósito: em Belém, um PM está sendo investigado por atirar contra crianças e adolescentes que furavam o lockdown na última sexta.
RUMOS ERRADOS
O governo brasileiro já pediu 20 vezes mais dinheiro para agências internacionais este ano do que em 2019. Já foram solicitados mais de US$ 4 bilhões (o equivalente, hoje a R$ 22,6 bilhões) a instituições como o BID e o BIRD, enquanto até o ano passado essas tomadas eram pequenas e pontuais. O principal destino são medidas para mitigar a crise gerada pela pandemia e pelas quarentenas – 43% são para pagamento do auxílio emergencial. É que o governo prefere aumentar a dívida em dólares do que aumentar a feita no mercado doméstico. Dá pra prever um futuro bem catastrófico… Mas não para José Franco de Medeiros Morais, subsecretário de Dívida Pública do Tesouro: “Do ponto de vista da dívida, são empréstimos baratos”, garante.
Se a economia vai mal, definitivamente não se pode colocar a culpa só nas quarentenas. Abrir o comércio e os salões de beleza não ia trazer prosperidade nenhuma de volta com pessoas morrendo aos milhares. Ademais, para analistas ouvidos pelo Estadão, a postura catastrófica do governo brasileiro frente à pandemia tem afastado investidores, e não é coincidência que o real seja a moeda que mais se desvalorizou no mundo este ano. “Investidores gostariam de ver o governo no comando da situação. Temos visto o confronto entre o Executivo (federal) e governadores, assim como discussões com o Congresso sobre os estímulos, além de mudanças ministeriais que aumentam as dúvidas sobre a capacidade do governo de continuar com reformas estruturais”, diz Martin Castellano, chefe da seção de América Latina do Instituto de Finanças Internacionais. O economista Armando Castelar, do Ibre/FGV, é mais direto: investir no Brasil agora seria como “correr para um prédio em chamas”.
Apesar disso, o vídeo da reunião ministerial agradou a alguns, pela manifesta vontade do governo em avançar em “reformas” prometidas na campanha: reduzir o tamanho do Estado, avançar nas privatizações, atrair capital privado. Mesmo em relação a isso, porém, ficou a dúvida sobre a real capacidade de cumprir com a agenda de maldades.
NAS FACULDADES
A combinação de famílias empobrecidas e aulas presenciais canceladas fez com que em abril deste ano a evasão no ensino superior privado subisse 32,5%, e a inadimplência, 70%, comparando com o mesmo período de 2019. Mesmo nos cursos a distância a taxa cresceu. E quem deve vai pagar essa conta são os professores: “Se continuar nesse ritmo de crescimento, 21% das instituições não vão conseguir pagar a folha de pagamento em junho”, diz ao Estadão o diretor-executivo do Semesp, que representa 708 instituições de ensino superior brasileiras. No limite, 30% das instituições podem fechar as portas até o fim do ano.
O setor pediu ao MEC que amplie o número de vagas para o Fies e para o ProUni para tentar conter o abandono de parte dos estudantes, mas ainda não há resposta. O que o Ministério já fez, sim, foi ampliar a oferta de educação a distância no ensino superior público.
UMA ONDA, VÁRIOS PICOS
A OMS acredita que países podem viver em breve novos picos de covid-19 antes de uma segunda onda. “Quando falamos sobre uma segunda onda, o que geralmente queremos dizer é que haverá uma primeira onda da doença por si só, e depois reaparecer meses depois. E isso pode ser uma realidade para muitos países dentro de alguns meses. Mas também precisamos estar cientes do fato de que a doença pode aumentar a qualquer momento. Não podemos fazer suposições de que, apenas porque a doença está em declínio, ela continuará em declínio e ainda temos alguns meses para nos preparar para uma segunda onda”, alertou Michael Ryan, secretário-executivo do organismo. O alerta foi para regiões que estão relaxando o isolamento: é preciso que mantenham suas medidas de vigilância do vírus para identificar novos surtos antes que eles se espalhem.
A reportagem da Wired resgata o caso da Coreia do Sul, que vivenciou (e, ao que tudo indica, controlou) um novo surto depois que tudo parecia estar bem. Tanto no começo da epidemia por lá como nesse segundo boom de casos, o cerne da estratégia é um regime de rastreamento de contatos que utiliza registros de cartão de crédito e de telefone celular, além de dados de localização GPS para rastrear movimentos anteriores de indivíduos infectados. “Do ponto de vista europeu, isso pode ser aceito como uma violação excessiva da liberdade pessoal, mas o governo sul-coreano preparou uma maneira de usar essas informações para investigações epidemiológicas após a crise de MERS em 2015”, diz Jaehun Jung, pesquisador da Universidade Gachon. Junto a isso, estão os já famosos testes abundantes e com rápida análise.
Um caso que tem intrigado especialistas é o japonês. O país desde o começo chocou por não adotar medidas usadas com sucesso em outros locais, como quarentenas, e por ser um dos países que menos testaram a população. Depois de um período com a situação aparentemente sob controle, houve uma subida brusca nos casos e o país enfim decretou estado de emergência. Ainda assim, com medidas tímidas: pedidos para evitar passeios desnecessários, trabalhar em casa e observar o distanciamento social. Mas, contra muitas das expectativas, a curva foi achatada em poucas semanas e o Japão, com 851 mortos e 16 mil casos conhecidos, já anuncia a reabertura. Ninguém sabe bem o porquê disso. De concreto, o que o governo fez desde cedo foi cancelar aulas e suspender eventos com aglomerações. Uma possível chave para o sucesso está nos rastreadores de contato, mas no Japão isso acontece de forma analógica, e não baseada em aplicativos. Há pesquisadores que apontam também a possibilidade de os hábitos culturais interferirem na transmissão.