Por Marc Bassets, publicado em El País –
Escritor recebe os jornalistas em sua casa, nos arredores de Paris. “Como escritor você nasceu culpado, e hoje não me sinto assim”, conta sobre suas sensações
Quando o telefone tocou, pouco depois do meio-dia desta quinta-feira, Peter Handke achou que se tratava de um advogado norte-americano cuja ligação estava esperando. Em seguida entendeu que o interlocutor era alguém da Academia Sueca. Depois, saiu para caminhar pelos bosques próximos de Chaville, o povoado dos subúrbios de Paris onde reside. Às 15h45 (hora local), retornou por um dos caminhos de terra que levam à sua casa com jardim. Uma dezena de jornalistas já o esperava.
“Passem ao jardim”, convidou-os, desafiando sua reputação de escritor antissocial e isolado. “Não sei se estou feliz, mas estou emocionado”, declarou. “Mas não posso demonstrar para as câmeras e máquinas fotográficas. É difícil estar emocionado. É preciso ser ator para está-lo diante de vocês”. Depois revelou: “Não sei como comemorar. Eu gostaria de beber, mas não comi nada hoje. Não estou com fome.”
Suas sensações eram estranhas. “Como escritor você nasceu culpado. E hoje, a esta hora, não me sinto culpado, sinto-me livre. Talvez às seis da tarde volte a me sentir culpado”, afirmou.
O Nobel 2019 chegou ao escritor austríaco quando muitos tinham deixado de esperá-lo, começando por ele. Seus ensaios em defesa da Sérvia durante as guerras balcânicas dos anos noventa, e mais o gesto de assistir ao enterro do líder nacionalista sérvio Slobodan Milosevic, morto em 2006, pareciam tê-lo relegado, embora cada ano continuasse figurando nas bolsas de apostas. Ele garantia que não esperava o prêmio.
“Pelos problemas que tive há anos nunca pensei que me escolhessem”, disse o autor de O Medo do Goleiro Diante do Pênalti e A Perda da Imagem. “Houve muito ruído quando escrevi de um modo diferente sobre a guerra civil na Iugoslávia, e posso entender. Por isso acredito que a decisão da Academia de Estocolmo foi corajosa.”
Amável e hospitaleiro com os jornalistas, alternando entre o alemão, o inglês, o francês e algo de castelhano, Handke se mostrou incomodado com as perguntas sobre suas posições a respeito da Sérvia e de Milosevic. “Não tenho nenhuma posição”, disse em várias ocasiões. Sobre sua presença no funeral do líder nacionalista, replicou: “É um crime? Você acha um crime?”.
Filho de mãe eslovena, Handke sempre foi defensor da posição sérvia nas guerras da desaparecida Iugoslávia e viajou para Belgrado em 1999 para mostrar sua solidariedade quando o país estava sendo bombardeado pela OTAN para que parasse a limpeza étnica no Kosovo. Ele deixou sua opinião clara em livros como Uma Viagem de Inverno ao Danúbio, Save, Moravia e Drina ou Justice for Serbia (1995) e Apêndice de verão a uma Viagem de Inverno (1996). Criticou duramente o Tribunal de Haia por crimes na Iugoslávia: em um ensaio, o descreveu como ilegítimo e considerou a acusação de Milosevic um erro.
“Não tenho nada a mudar”, prosseguiu. “Todo dia eu gostaria de mudar. Mas minha natureza é minha natureza. É a natureza de um escritor, não de um jornalista. Meu sentimento mais profundo é o sentimento épico, como Cervantes, como Homero, como Tolstói. Este é meu mundo. E escritores austríacos como Adalbert Stifter, Heimito von Doderer, Ivo Andric.”
Também mencionou a influência da Espanha, país onde passou temporadas e é cenário de alguns de seus livros. Cita Juan da Cruz, Teresa de Ávila, Cervantes. “Também as paisagens, sobretudo”, acrescenta. “Eu gosto da Castela: mil metros sobre o mar, e está vazio. Mas gostar não é a palavra. Sinto apego.”
Há alguns anos, Handke declarou que “é preciso suprimir [o Nobel]”. “É uma falsa canonização”, disse. Hoje, com um toque de humor, matiza. “Agora corrigiram isso. Talvez continuem pelo bom caminho. Não tenho nada a criticar”, disse. E, mais sério, explicou: “Quando critiquei o prêmio Nobel, não falava como autor, e sim como leitor. Minha existência consiste em ler. Sinto-me em meu lugar quando começo a ler, a decifrar, a encontrar as palavras”. Cada manhã dedica um momento a ler alguns versos de Píndaro e outros autores em grego antigo. “É bom para a cabeça e para o coração, para a saúde”, comenta.
Outra pergunta incômoda. Em que gastará o dinheiro? “Ah, mas que perguntas… Não muito sutis. Quando era jovem escutava uma canção de Ray Davies, dos Kinks, com uma frase de que eu gostava de muito: ‘Tem muita coisa na minha cabeça’. Agora, não me pergunte sobre o dinheiro…”
E depois do Nobel? “É preciso continuar como se nada tivesse acontecido. É um de meus temas na vida: fazer de conta que nada aconteceu. Como disse Ibsen, ainda há muitas flechas no arco para disparar. Mas não quero dizer isso, porque Ibsen morreu depois de dizê-lo. Tenho vontade de continuar. Ainda tenho coisas pra contar, para rimar, para imaginar”.