Por Anna Beatriz Anjos, Raphaela Ribeiro, compartilhado de A.publica –
Usada como justificativa, nota técnica da petroleira com diretrizes para testagem rápida de funcionários é questionada pelo Ministério Público do Trabalho
Rovena Rosa/Agência Brasil
Em uma manhã no início de junho, Daniel* chegou à Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão (RPBC), na Baixada Santista, para mais um período de trabalho de 12 horas diárias por três dias seguidos. Desde o fim de maio, a prática na primeira grande refinaria construída pela Petrobras é testar os funcionários que, após a folga, retornam para mais uma jornada. Considerados essenciais, esses trabalhadores da parte operacional continuaram atuando presencialmente na pandemia.
Durante o expediente, Daniel fez um teste rápido, aquele que detecta se a pessoa possui anticorpos contra o vírus Sars-Cov-2, causador da Covid-19. Naquela data, ele não tinha nenhum dos sintomas mais comuns da doença, mas alguns dias antes havia sentido dores de cabeça. O resultado ficou pronto em menos de 30 minutos e informava que sua amostra de sangue apresentava os anticorpos IgM e IgG, que aparecem em reação ao vírus – a IgM surge logo no começo da infecção e é produzida por poucos dias; já a IgG é fabricada em um segundo momento, como uma resposta mais aprimorada e que dura um período mais longo no corpo.
Apesar dos resultado positivo do teste, a empresa orientou Daniel para seguir trabalhando, pois ele já teria tido Covid-19 e estaria curado. A decisão se baseia na Nota Técnica 28, expedida pela Petrobras em 22 de abril como protocolo de testagem rápida de funcionários e profissionais de saúde em suas plataformas e refinarias.
O problema é que, segundo a reportagem apurou, o resultado do teste rápido de Daniel não significa necessariamente que a infecção estaria superada. Pelo contrário, Daniel poderia estar infectando outros colegas de trabalho.
“O médico do laboratório que estava aplicando o teste disse ‘está tudo certo, você já pegou [o coronavírus]’”, conta Daniel. “Perguntei se tinha algum problema para quem estava trabalhando comigo, no meu entorno, e ele respondeu que não.”
Preocupado com os colegas de trabalho e com a família, Daniel decidiu buscar uma segunda opinião. Ao analisar o resultado do teste rápido, o médico que atendeu Daniel fora da empresa deu a ele um atestado para que ficasse em casa por 14 dias e pediu um exame molecular (ou RT-PCR), que identifica a presença de material genético do coronavírus no corpo. Foram quatro dias entre o teste rápido e o molecular. Aí veio a surpresa: o resultado era positivo.
Segundo os especialistas, havia grandes chances de Daniel estar transmitindo o vírus. “Isso me deixou perplexo e extremamente preocupado. Eu representava risco para as pessoas com quem eu estava trabalhando e para a minha família”, afirma.
De acordo com o Sindicato dos Petroleiros do Litoral Paulista (Sindipetro-LP), há na Refinaria de Cubatão outros casos de trabalhadores que testaram positivo para ambos os anticorpos e foram orientados a trabalhar presencialmente, como aconteceu com Daniel. O motivo é que a nota técnica da Petrobras determina que sejam consideradas aptos ao trabalho funcionários assintomáticos que testem IgG positivo para o coronavírus, independente do resultado da IgM e sem a necessidade de testes adicionais. A determinação é aplicada em unidades operacionais da Petrobras em todo o país.
Além disso, o sindicato já contabiliza três mortes por Covid-19 na unidade de Cubatão – duas de profissionais terceirizados e uma de trabalhador próprio. De acordo com a entidade, a refinaria conta com cerca de 800 funcionários próprios e 700 terceirizados.
“Para mim, essa nota é perigosa pois coloca para trabalhar pessoas que ainda não estão totalmente curadas e podem estar disseminando o vírus no ambiente de trabalho”, diz Marcelo Juvenal Vasco, coordenador de Saúde e Segurança do Sindipetro-LP e diretor da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP).
Procurada pela reportagem, a Petrobras afirmou que não divulga números específicos de contaminados e mortos de nenhuma de suas instalações. A empresa não publica informações sobre funcionários que contraíram o coronavírus, alegando “garantia da privacidade e do sigilo médico”.
A falta de transparência também tem sido motivo de embate entre a empresa e os sindicatos. “Nós temos muita dificuldade de comunicação com a Petrobras, esse é o grande problema”, afirma Adaedson Costa, dirigente do Sindipetro-LP e da FNP. Para acompanhar os casos, a FNP pede aos trabalhadores que informem aos sindicatos quando testarem positivo.
Em maio, o Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ) ingressou com uma ação na Justiça e conseguiu no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região o direito de ter informações diárias sobre as refinarias e plataformas do estado. Segundo o Ministério de Minas e Energia, até o momento três empregados da estatal morreram de Covid-19, 137 estão em quarentena no momento e outros 7 se encontram hospitalizados. Os dados não consideram trabalhadores terceirizados e não são discriminados por unidade.
Ministério Público do Trabalho contesta Petrobras
O Ministério Público do Trabalho de Rio de Janeiro (MPT-RJ) contesta a nota técnica da Petrobras. Um parecer técnico do órgão, emitido em 10 de junho, conclui que se o trabalhador testar positivo para os anticorpos IgM e IgG “não há garantia de ausência de infectividade pelo coronavírus” sem que o exame molecular seja, também, negativo.
Outros especialistas ouvidos pela Agência Pública consideram arriscado presumir que a presença de IgG, sem considerar a IgM, é um atestado de que o indivíduo está livre do coronavírus. “Quando há IgG, quer dizer que está havendo uma resposta imunológica, mas não necessariamente essa resposta já foi capaz de eliminar o vírus”, destaca o pesquisador do Instituto Adolfo Lutz Cyro Alves de Brito, doutor em Imunologia pela Universidade de São Paulo (USP). Por isso, de acordo com ele, é perigoso liberar funcionários ao trabalho apenas com base nesse aspecto.
O médico Renato Grinbaum, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), relembra que os testes rápidos “não são confiáveis” e não devem ser usados como diagnóstico. “Uma pessoa com IgM positivo tem mais possibilidade de ser infectante do que uma pessoa com IgM negativo. Ou seja, a informação do IgM seria uma informação de segurança a mais”, diz.
Brito afirma que, antes de serem liberados ao trabalho, funcionários assintomáticos que testam IgM e IgG positivos devem “fazer um teste PCR para ter certeza de que não estão mais produzindo o vírus”. “Ou ficam em isolamento”, conclui.
Nota técnica em xeque
A procuradora do trabalho Junia Bonfante Raymundo deparou com a Nota Técnica 28 durante seu trabalho na Operação Ouro Negro, que fiscaliza plataformas de exploração e produção de petróleo e gás natural. O MPT-RJ passou a contestar o protocolo de testagem da Petrobras depois de consultar pesquisadores com sólida atuação nas áreas de saúde pública e virologia.
Em um dos pareceres elaborados a pedido da procuradora, cientistas da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) destacam que os anticorpos IgM são marcadores de infecção recente. Por isso, quando o resultado de um teste rápido aponta para a sua presença no organismo, mesmo que também haja presença de IgG, a interpretação mais adequada é de que o indivíduo está “contaminado naquele momento”. A Fiocruz recomenda, com base nos estudos da OMS, que os trabalhadores com teste positivo para IgM sejam afastados do trabalho por 14 dias. Voltar ao trabalho, só quando o IgM estiver negativo, segundo os pesquisadores. “A pessoa ainda pode estar na fase ativa [da infecção] e transmitindo o vírus. A Petrobras pode estar propiciando o contágio dos seus funcionários por utilizar de uma interpretação equivocada desses resultados”, destaca Isabele Campos Costa Amaral, uma das autoras da pesquisa, doutora em Ciências da Saúde.
Os pesquisadores da Fiocruz também criticam a utilização de testes rápidos para diagnosticar os funcionários, porque dependendo do tempo de contaminação os anticorpos podem ainda não ser detectáveis. “Individualmente, esses testes falham muito”, explica o infectologista Renato Grinbaum. “São mais apropriados para fazer inquérito epidemiológico, ou seja, saber a porcentagem da população que teve o vírus para fazer estimativas em termos de saúde pública.”
“O MPT já deixou muito claro que é contra a entrada do trabalhador com o IgM positivo. É um absurdo essa Nota Técnica da Petrobras. Esse critério de testagem é um risco muito alto que estamos correndo, porque a qualquer momento pode entrar um trabalhador [infectado] e iniciar um surto”, afirma a procuradora Bonfante, alertando que se não houver uma “revisão rápida” pela Petrobras, o órgão pode tomar medidas judiciais.
Procurada pela reportagem, a Petrobras defendeu que a Nota Técnica 28 “é compatível com as diretrizes do CDC (Centers for Disease Control and Prevention)”, dos Estados Unidos, e afirmou que os testes rápidos “são uma uma entre várias barreiras preventivas adotadas nas unidades”, que incluem também “redução de efetivo presencial, uso de máscaras, reforço na higiene, medidas de conscientização e monitoramento contínuo do estado de saúde dos colaboradores, com canais 24 horas para reporte imediato de sintomas”.
Trabalhador que morreu precisou levar álcool em gel e máscara por conta própria
Só em 23 de abril – quando o Brasil contabilizava 49.492 casos e 3.313 óbitos pela Covid-19 – a refinaria da Petrobras em Cubatão passou a fornecer máscaras aos seus funcionários, embora a orientação do Ministério da Saúde para o uso de máscaras caseiras tenha vindo vinte dias antes. Também há relatos de que o primeiro lote comprado era de máscaras pequenas, que não serviram em vários dos trabalhadores. O álcool gel veio pouco tempo antes, no meio daquele mês. Já a testagem em massa do pessoal da unidade se iniciou apenas entre o fim de maio e início de junho.
“Eu estava mais preocupado, não era nem com a higienização das mãos, mas com a higienização de utensílios – mouse, teclado, computador, mesa – que precisam ser limpos a cada troca de turno”, afirmou à Pública um integrante da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) da refinaria, que pediu para não ser identificado. “Quando a empresa começou a correr atrás para comprar álcool em gel, já era a época em que estava em falta.”
Trabalhadores fizeram uma manifestação em frente à refinaria em 10 de junho pedindo que a gerência tomasse providências mais consistentes para impedir a transmissão do vírus. O Ministério Público do Trabalho de Santos abriu um inquérito para apurar a demora da gestão da refinaria em adotar essas medidas.
O técnico de operação Antonio Carcavalli Filho, de 58 anos, era um dos trabalhadores que pressionavam a direção da unidade a agir. Integrante da CIPA, ele perdeu a vida por conta da doença em 30 de maio, depois de passar 20 dias internado na UTI da Casa de Saúde de Santos, onde vivia com a família. “Ele ia trabalhar de fretado da refinaria, não tinha contato com ônibus municipal. O trajeto era entrar no fretado, que passava perto de casa, ir trabalhar, voltar, descer do ônibus e entrar em casa”, conta o filho Fábio Carcavalli, de 32 anos, que acredita que o pai tenha se infectado no trabalho.
Fábio diz que, por algumas semanas, Carcavalli precisou levar álcool em gel de casa para utilizar durante o expediente, além de comprar máscaras por conta própria. Ele trabalhava no Centro de Controle Integrado (CCI), uma sala fechada onde ficam, por turno, de 25 a 30 empregados. Outros funcionários do mesmo grupo também apresentaram sintomas de Covid-19 no início de maio.
O Sindipetro-LP acredita que esse tenha sido um dos focos de transmissão do vírus na refinaria. “É um ambiente confinado, fechado, que não tem circulação [de ar]. Esse ambiente, que deveria estar sendo higienizado, não foi”, declara Marcelo Juvenal Vasco, coordenador da entidade. “Se a empresa não quer parar a produção, tem que prover aos funcionários condições [seguras] para trabalhar.”
Antes de ser internado, Carcavalli provavelmente transmitiu o coronavírus ao filho e à esposa. Fábio explica que ele e mãe não chegaram a ser testados porque se mantiveram em casa, em isolamento, mas apresentaram sintomas enquanto o pai lutava pela vida na UTI. Eles não puderam se despedir de Carcavalli, que foi entubado em 10 de maio, dia das mães, e permaneceu assim até o fim. “Naquele domingo à tarde ele ligou avisando que seria entubado. Aí a gente não viu mais, não podia entrar lá. Ficamos só recebendo os boletins médicos diários”, relembra Fábio. Após a morte, o corpo saiu do hospital já dentro de um caixão lacrado. “Não tem despedida, é uma coisa totalmente fria’, narra.
Segundo Fábio, o pai estava prestes a sair de férias quando começou a sentir febre, dores no corpo, perda de paladar e a ter baixas na oxigenação, sintomas de Covid-19. E estava planejando se aposentar em pouco mais de um ano. “Ele já tinha programado a saída para setembro ou outubro do ano que vem, e já estava fazendo planos de viajar e estudar. Queria fazer algo relacionado ao Direito”, lembra o filho. “Às vezes a gente nem acredita no que aconteceu, foi muito rápido”.
Sobre a situação da Refinaria de Cubatão, a Petrobras afirmou que “todas as medidas necessárias para controle da disseminação do coronavírus foram tomadas de forma diligente”. A empresa afirmou que fez a primeira aquisição de álcool em gel em março – sem especificar se o fornecimento se iniciou ainda naquele mês – e reiterou que, em abril, “houve a aquisição de máscaras descartáveis e reutilizáveis”.