Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César fala da Petrópolis que cresceu em seu coração, desde criancinha.
“Se alguém me indagasse a respeito de um lugar para as férias, eu não hesitaria em responder que, por mim, eu passaria uns quinze dias em Petrópolis. Qual é a origem dessa verdadeira obsessão? Como muitas de nossas manias, esta tem origem na infância.
Costumávamos passar os Natais em Petrópolis, na casa do tio Celso, padrinho de casamento de meus pais. Íamos de ônibus (Viação Fácil ou Única) até a Rodoviária de Petrópolis. Depois pegávamos outro ônibus.
Até hoje, passados mais de quarenta anos, me lembro do ponto de referência para o nosso desembarque: a concessionária da Fiat e do Alfa-Romeo.
Atravessávamos a rua e chegávamos a Shangri-lá: casa enorme, com pinheirinho no quintal, piano e cinzeiro de cristal na sala, bicicleta ergométrica no banheiro, quartos, muitos quartos, copa, cozinha, lavanderia, espaço de garagem para não sei quantos carros e biblioteca.
Só o fato de uma casa ter um cômodo reservado para a biblioteca já é algo digno de nota, mas, além dos livros, havia também uma coleção dispersa de besouros acondicionados em potinhos de urina.
Eu sei disso porque nós ficamos hospedados na biblioteca da casa.
Ou seja, antes de ler na escola pública o livro “O escaravelho do diabo”, eu já tinha observado alguns pormenores para a minha futura grande obra-prima “Os rola-bosta no frasco”.
Havia também um canil. Alguém na casa do tio Celso criava dálmatas. Eu não sei se cheguei a cogitar a hipótese de criar dálmatas nos apartamentos onde morava. Acho que não fui tão fundo.
Fora da casa do tio Celso também havia vida. Como esquecer o nome do supermercado: ABC? E aquele canal que corta a cidade? E o sítio do tio Celso, que como todo bom homem do norte, também tinha seu lugar de colher e plantar?
Tio Celso era geólogo da Petrobrás. Meu pai, técnico em contabilidade na mesma empresa. Celso e Cícero são exemplos de figura paterna para mim. Se eu pudesse, seria um pouco dos dois para os meus filhos, mas acontece que eu sou eu e que os tempos são outros.
E a Petrobrás? Tem a sua história perpassada por gente como eles e os tempos são outros. Ir ao prédio da Petrobrás na Avenida Chile é um senhor condutor de lembranças da minha pequena biblioteca de besouros rola-bosta.
Quando recebi a notícia de que Petrópolis estava debaixo d´água, liguei para um amigo que é professor da Rede Municipal de lá. Ele me tranquilizou, estava são e salvo. Entretanto, disse-me que os vídeos a que assistiu eram assustadores.
Eu vi alguns e chorei.
Friburgo, Angra, Petrópolis, qual será a próxima cidade do Rio de Janeiro a desaparecer sob as águas e a lama? E no Rio de Janeiro? Acari? E em Nova Iguaçu? Tinguá, Miguel Couto?
Um pouco de mim está debaixo de toda aquela terra; um pouco de mim ajudará os desabrigados; um pouco de mim quer justiça.
Quanto ao último aspecto, simplesmente porque o que muito se repete, se não pode ser evitado, pode ter seus efeitos minimizados.
E eu tinha prometido à minha mãe fazer um passeio a Petrópolis – ela também é meio obcecada pela cidade. Estava protelando o passeio por receio do meu carro, um poderoso Siena 2011 a quem apelidei de velho senil, não suportar o tranco.
Se o carro quebrasse, não iria adiantar o apelar para o visual daquelas montanhas, que é de arrombar as retinas, nem enaltecer o ar fresco com cheiro de mato que limpa os pulmões. Nada disso. Ela me diria que era para a gente ter subido de ônibus mesmo.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.