E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva ao bairro carioca de Piedade, no qual brincou na infância. Este texto é continuação da crônica anterior sobre a demolição dos prédios da falida Universidade Gama Filho (veja o link no final). Os prédios podem ser demolidos, mas as gostosas histórias de nossa infãncia continuam de pé.
“Passar pelo bairro da Piedade é se lembrar da Letícia, filha de uma amiga da minha mãe. Eles moravam numa habitação, misto de vila e cortiço, onde o banheiro era coletivizado. Quer dizer, não tinha banheiro na casa da Letícia, mas um para todos da vila do lado de fora. Quando vi neste 2023 o vídeo do Heitor dos Prazeres na exposição do CCBB, me lembrei imediatamente dos tempos da Piedade. Pensei comigo: “Nossa, igualzinho a casa da Letícia”.
A gente ia para a casa dela brincar, era isso. Mamãe nos levava e pronto, fim de papo. E era bom. Brincava-se no terreno baldio-quintal com as placas verdes de musgo, com aquele matinho mal-cuidado, maroto. E eu nunca me perguntei por que a gente ia para casa da Letícia e não para a casa da mãe da Letícia, que se chamava Raimunda.
Meu Deus, tinha um cachorro que corria atrás da gente. Eu sempre tive muito receio de cachorro. Foi por causa deste canídeo que bolei um plano, mirabolante e infalível como os do Cebolinha. Era mais ou menos o seguinte: cavava-se um buraco, que seria coberto com jornal. Atraía-se o cachorro até o local. Pulava-se o buraco e o cachorro, coitado, caía feito um patinho para todo o sempre ou pelo menos enquanto durasse a brincadeira. Imaginação no papel eu já tinha. Não tinha pá nem força nos braços.
Foi com muito orgulho que soube muito tempo depois que meu pai tinha o original deste plano maluco que inventei: ficou guardado a não sei nem quantas chaves na sua mesa de escritório até sua aposentadoria. Pude ver minhas garatujas, meu pouco talento para o desenho, essas coisas.
Os irmãos de Letícia, gêmeos, foram batizados na igreja de São Jorge, em Cascadura. Letícia era mais bonita que sua irmã, Ana Paula. E o lugar onde a família morava não tinha banheiro, como disse. Letícia, primeiro amor, quando chegasse a hora dos primeiros amores?
Nessa época, a gente morava na Praça Seca. Para ir para a casa da Letícia, tinha que pegar o 636 (Gardênia Azul – Saenz Pena), que dava uma quebrada típica de chicote de bonde ali no finalzinho do muro da Funabem, seguia em frente, passava pelo coreto, depois pela Fábrica de Açúcar União, para finalmente entrar na rua da Letícia, aquela que tem uma escolinha linda, bem antiguinha, de outros carnavais.
Um pouco de concentração e chego a sentir o doce açúcar nas narinas ou, o cheirinho de amendoim da fábrica de amendoim da Agtal, fábrica também nas redondezas.
Em um final de semana prolongado e agitado como este que foi o de Finados de 2023, li que houve a implosão dos prédios que formavam o Campus da Gama Filho. Cacete, no mesmo dia em que a moçada fazia prova do Enem com tema de redação sobre o trabalho invisível, que é assunto muito próximo da realidade de muitas pessoas. Enfim, que o tema seja discutido com o respeito que lhe é devido, não somente para redigir um texto dissertativo. Não é nada, não é nada, pode vir a ser um sinal de avanço civilizatório.
Faz mais de trinta e cinco anos que Letícia foi morar mais a família em Campos, norte do Estado. Nunca mais a vi. “Nunca mais! Nunca mais!”, repete o corvo do Allan Poe. Cada um tem a Lenore que merece.
Que lhe venha até as narinas o cheiro da infância recuperada no musgo do terreno, no doce do açúcar e da cobertura do amendoim. E que haja um banheirinho limpinho, por precaução, para os corcundinhas, caso seus infalíveis planos não derem certo. Perdão, cachorrinho, perdão.”
Mais uma digressão deste inconveniente editor. Baseado no que está escrito do site do Piedade Tênis Clube: “O bairro teve a honra de ter sido nomeado pelo imperador D. Pedro II. Tinha o nome de “Parada Gambá”, por causa da grande concentração de terreno vazio e de suas grandes fazendas. De tanto os moradores serem humilhados com o nome do bairro pelos residentes em bairros vizinhos, depois de muitas reclamações, um morador foi até o imperador e falou da seguinte forma: “Tenha piedade de nós e troque o nome do nosso bairro”. Sendo assim atendido pelo imperador, surgiu então o bairro de Piedade.” (Washington Aráujo)
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.