Pirarucu no Engenho Novo é refrão para “We are the world”

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos transporta a uma época em que artistas de renome mundial, nos EUA, gravaram em favor da sofrida e discriminada África.

Nosso cronista vai do Engenho Novo, bairro da cidade do Rio de Janeiro, até os Estados Unidos, mostrando que a linguagem da arte e da solidariedade é universal.




No final do texto, vejam o vídeo dos artistas cantando “We are the world”. César, infelizmente não nos enviou, talvez por não ter, a Dona D. cantando “Pirarucu”.

Entenda:

“Pirarucu peixe é, mas virou refrão de “We are the world” na boca de Dona D. Era assim, verbatim, que ela cantava a plenos pulmões o refrão enquanto cuidava de suas plantinhas na varanda de um apartamento do Engenho Novo, subúrbio do Rio de Janeiro.“Pirarucu! Pirarucu!” E ela não saía disso.


Dona D. não mudava a letra por estar ligada à preservação da região amazônica, certamente que não. Ela gostava de plantas e bichos como se gosta de gente, com um afeto que nem sempre é explicável, mas isto não quer dizer que ela fosse uma defensora da ecologia já naquele tempo.


Então qual seria o motivo para ela cantar daquele jeito? Aproximação, associação, eis a minha hipótese. É que a palavra “pirarucu” produz uma sequência de uma sílaba fraca seguida de uma sílaba forte, o tal do iâmbico que é uma unidade métrica muito comum em poesia de língua inglesa. Uma ilustração fica mais ou menos assim:
Versão da Dona D.:
piRAruCU! piRAruCu!
Versão original:
We ARE the WORLD! We ARE the CHILDREN!

Quem diria, Dona D., que cantava como os passarinhos, utilizava da unidade métrica de verso que sustenta a maior parte da poesia de Shakespeare. As personagens “altas” do velho bardo só se expressam em pentâmetros iâmbicos, isto é, em versos de dez sílabas, com acento fraco na primeira e forte na segunda.


É bom lembrar que a levada de “We´re the world” se presta a paródias. Aqui no Brasil não foi incomum ouvir, em vez do refrão em bom inglês, o seguinte: “Me arde o olho, me arde a vista”. Sobrepunha-se à letra supostamente universal os efeitos do mundo exterior sobre os olhos, podendo ser conjuntivite, reação a gás lacrimogêneo ou consequência de forte emoção.


Houve também uma participante de BBB que era ridicularizada por não saber cantar nem sequer o refrão de “We´re the world”. Era uma jovem mulher que depois, a exemplo de outras mulheres que se tornaram celebridades por participarem do programa, foi capa de alguma “Playboy”.


Como me lembrei de Dona D. ao assistir com a família o documentário “A noite que mudou o pop” (Netflix, 2024)! É do filme que falarei agora.


Sendo meu filho fã de Michael Jackson, o filme nos proporcionou momentos partilhados em família. Em vez de cada um em seu canto com sua tela, aboletamo-nos em frente ao computador para ver a biografia de “We´re the world”, desde a sua criação, e dos motivos para tal, passando pela gravação até sua execução pública.


Salvo erro, a canção teve estreia mundial: o mundo inteiro a ouviu pela primeira vez no mesmo momento. Aliás, esse lance de estreia mundial me faz pensar: “Em termos de distribuição, música pop é como Coca-Cola: os americanos conseguem fazer chegar sua música em qualquer lugar do planeta.”


Seja como for, há uma trupe de gênios da música no filme que faz da música comercial norte-americana ser o que é: Michael Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder, Quincy Jones, Dylan, Springsteen, Lauper, entre outras feras. Como controlar egos é uma habilidade que só gente como Quincy Jones possui.
A canção foi gravada em uma única noite de janeiro de 1985.

A gravação é uma aula de decomposição, de como as partes são separadas e depois reunidas em um estúdio. O refrão primeiro, depois os solos. E para nós parece que tudo foi gravado em um só take. Magia é técnica.


Eu achei o documentário ágil, por vezes ilustrativo a respeito de como eram as modas e os costumes dos anos 80s. A genialidade de Michael Jackson permite que ele use uma jaqueta que parece o fardão da ABL e está tudo bem. Pela energia de sobra, Lionel Richie me fez lembrar de meu compadre Zé Café. Cindy Lauper era uma gracinha. Dylan foi salvo por uma paródia. Bruce Springsteen, quarenta anos depois, está parecido com o Popeye.


No final, por óbvio, a gente sai cantando: “Pirarucu, we are the children! Let´s make a pirarucu, so let´s start chicken”.


Não posso deixar de dizer que nós, os brasileiros, também fizemos uma reunião de nossa nata musical para angariar fundos para uma causa humanitária, a SOS Nordeste, também em 1985. Acha-se o vídeo no YouTube, apesar de aqui e ali as imagens parecerem tão enigmáticas quanto as de uma ultrassonografia. Entretanto, dá para reconhecer as mudanças de ritmo e os solos e o refrão.


Eu mostrei o videoclipe de “Deixa de Mágoa” para meu filho, que achou tudo muito parecido com a gravação de “We´re the world”. Não disse nada para o menino, mas acho que Gilberto Gil é o nosso Quincy Jones e também o nosso Bob Marley e o nosso Lionel Richie e o nosso Luis Gonzaga.


Fiquei feliz por ser o que sou e por ter a música que tenho. E fui cuidar da minha vida, mesmo sabendo que eu possa estar a cantá-la errado. “We´re the world, chega de tanto penar!””

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

Assista ao vídeo com grandes astros da música dos Estados Unidos cantando pela África, “We are the world”

https://www.google.com/search?q=We+are+the+world&source=lmns&tbm=vid&bih=641&biw=1366&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwjWqNOxuYiEAxXEspUCHcghCw8Q0pQJKAF6BAgBEAQ#fpstate=ive&vld=cid:19639c2f,vid:s3wNuru4U0I,st:0

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