Plebeus privilegiados no reino do laudêmio

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Taxa absurda sobre transações imobiliárias, paga à “família imperial” em tempos republicanos, acentua revolta pelas mortes na enchente de Petrópolis

Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora




Livros destruídos pela enchente no Centro de Petrópolis – a região que paga laudêmio à família real. Foto: Mauro Pimentel/AFP

No Brasil republicano, imperador é o Adriano; príncipe é Paulinho da Viola (até outro dia era Reinaldo, o do Pagode, que se foi infelizmente); e – como bem observou Eliana Alves Cruz no Twitter – princesa é nome de supermercado. O resto vai para o rol dos embustes desta terra toda errada. Entre elas, o delírio de uma família real brasileira, 133 anos após o fim da monarquia por aqui, integra a numerosa lista de bizarrices nacionais.

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E se, em verdade, sequer existe formalmente, não tem direito a impostos, taxas ou quaisquer pagamentos compulsórios, como o tal laudêmio. O nome horroroso batiza o percentual sobre as transações imobiliárias no primeiro distrito de Petrópolis – o mesmo que concentra parte das mais de 200 vítimas da enchente na cidade. Comprou? Vendeu? Pinga na conta dos herdeiros de Dom Pedro.

A excrescência foi criada em 1847, e beneficia não apenas os descendentes dos nobres portugueses. “O laudêmio carrega a ideia de propriedade imanente (fixa) sobre a terra. Ou seja, sou dono, permito que você construa, mas se você vender, tem que pagar uma taxa para mim”, explica Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História da UFRJ, a Ana Paula Bimati, do UOL.

Em Petrópolis, a taxa é de 2,5% – ou seja: um imóvel negociado por R$ 1 milhão engorda em R$ 25 mil o caixa dos herdeiros da monarquia extinta em 1889. A administração do privilégio cabe à Companhia Imobiliária de Petrópolis, criada para gerir a herança do clã.

Na cidade soterrada pela tragédia, o laudêmio engloba todo o centro histórico – originalmente a Fazenda do Córrego Seco. E a trama apresenta outro termo exótico. “Como a terra tinha sido adquirida com recursos de seu pai, D. Pedro 2º, no lugar de simplesmente vendê-la, criou a enfiteuse (permissão para o proprietário ceder bem a domínio útil e cobrar taxas), garantindo o laudêmio”, narra o historiador Marcus Dezemone, professor da UFF e da Uerj. Desde o Código Civil de 2002, não existem novas enfiteuses – mas as anteriores seguem em vigor.

(Nesta terça-feira, a Câmara, pressionada pelas centenas de cadáveres da serra fluminense, aprovou Proposta de Emenda à Constituição proibindo a cobrança de laudêmio e de outras taxas de ocupação em terrenos de marinha. A propriedade formal da União sobre as áreas, reminiscência do período imperial, será transferida a estados e municípios. A mudança não atinge a “família real”, nem outros beneficiários do pagamento, como a Igreja Católica, governos estaduais e municipais, além de outras famílias da elite brasileira.)

A lembrança da “taxa do príncipe” – como Petrópolis apelidou o despropósito – turbinou o sentimento de injustiça, a partir do pronunciamento da autoproclamada “alteza real” dom Bertrand de Orleans e Bragança sobre a tragédia. “A Família Imperial (sic), tão estreitamente ligada a Petrópolis, encontra-se sempre disposta a servir ao seu povo, oferecendo ainda nossas orações e solidariedade a todos os que vêm sofrendo. Rogo a Deus Nosso Senhor, por intercessão do Padroeiro São Pedro de Alcântara, que proteja e dê alento à boa gente petropolitana nesta hora de aflição e necessidade”, pontificou, em nota. Além de “orações e solidariedade” e dos apelos a Deus e ao padroeiro, nem um par de meias usadas para ajudar quem perdeu tudo.

O autor da fala é irmão mais novo do autoproclamado herdeiro do “trono”, Luiz Gastão Maria José Pio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança e Wittelsbach, 83 anos, que vive em São Paulo e, na juventude, fez votos de castidade à Tradição, Família e Propriedade (TFP), emblema do conservadorismo brasileiro. Um e outro são do ramo de Vassouras (RJ) do clã, e reivindicam a monarquia invisível contra o grupo de Petrópolis – o do laudêmio.

Vivem, todos, uma viagem anacrônica. Nos anos 1990, dom Joãozinho de Orleans e Bragança, fotógrafo e surfista morador no Rio (e “primeiro brasileiro a pegar onda em Bali”), carregava o “príncipe” na certidão de nascimento e no talão de cheques. (Agora, a Juliana Arreguy, do UOL, ele defende o fim do laudêmio.) Decreto de 1890, um ano depois da proclamação da República, aboliu todos os títulos de nobreza do Brasil, mas em 1991, o então presidente Fernando Collor (hoje Pros-AL) revogou a medida. “A monarquia foi rejeitada depois disso . Ainda que esses títulos tenham sido reabilitados, não implica nenhum tipo de privilégio no Brasil”, garante Marcus Dezemone, também ao UOL. “Não há norma que defina nem mesmo a manutenção de títulos da família imperial”, completa.

Mas ainda tem lenha para queimar – como prova a eleição, em 2018, de Luiz Philippe de Orleans e Bragança como deputado federal, pelo PSL paulista. Bolsonarista de raiz, sua alteza, autor do livro “Por que o Brasil é um país atrasado?”, foi pego no pulo, por ter omitido R$ 7,68 milhões da declaração de bens à Justiça Eleitoral, segundo Guilherme Waltenberg e Mário Cesar Carvalho, do Poder 360. É aquilo: de onde menos se espera, daí que não sai nada mesmo.

Bombeiros e voluntários buscam por soterrados no alto do Morro das Oficinas: Defesa Civil registrou 269 deslizamentos de terra durante o temporal (Foto: Rogério Santana/Governo RJ)

Puxar o fio da história denuncia a contribuição decisiva dos ancestrais da turma que embolsa a taxa petropolitana, na construção de uma terra pontilhada por privilégios e injustiças, violência e desigualdade. A obra, pela qual gerações de brasileiros pagam muito caro, está pertinho de completar 522 anos. Começa na invasão de abril de 1500, com as caravelas de Cabral; prossegue pela usurpação permanente das riquezas na era colonial; radicaliza-se na inominável barbaridade da escravidão; e se perpetua na sucessão de conchavos que sustenta a ordem torta desses trópicos.

Todos os momentos têm a digital dos colonizadores – comandados pelos ancestrais dos Orleans e Bragança do século 21. Um deles declarou a independência sem briga nem revolução; outros assistiram confortáveis ao alvorecer da República. Tudo se manteve no lugar, privilégios brasileiramente assegurados.

Em outros cantos da Terra, monarquias se foram com o povo passando o cerol nos inquilinos do trono – França e Rússia são os casos mais famosos. O sistema de governo sobrevive no sossego do bem-estar social (Holanda, Suécia, Dinamarca, Mônaco), aos solavancos (Japão e Espanha) ou graças a bem montadas estratégias de glamour – e aí o Reino Unido é imbatível. A família real inspira documentários e séries de TV, como a multipremiada “The Crown”, e movimenta a economia pelo turismo.

O Brasil ficou só com os defeitos da invenção de seres humanos que se entendem superiores, e suspiram pelo sonho de voltar a viver em castelos, cercados de rapapés, como nos contos medievais. Além de mamar um imposto injusto.

Porque rei por aqui só Pelé ou Roberto Carlos. O resto é plebeu.

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