PM dispara bombas de gás e balas de borracha contra moradores do Horto, no Rio de Janeiro

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Por Luíza Sansão e Clarisse Sardenberg, Ponte – 

Moradores resistiam à reintegração de moradias das 523 famílias que vivem no lugar, no bairro Jardim Botânico, zona sul do Rio. Casas foram construídas em área doada a funcionários do parque há mais de 150 anos

Policiais do Batalhão de Choque começam a avançar contra moradores. Foto: Luiza Sansão
Policiais do Batalhão de Choque avançam contra moradores do Horto. Foto: Luiza Sansão


Por Luiza Sansão, da Ponte Jornalismo e Clarissa Sardenberg, especial para a Ponte




Foi com bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha que policiais militares do Batalhão de Choque e do 23º BPM (Leblon) reprimiram moradores do Horto, na zona sul do Rio, para que oficiais de Justiça cumprissem um mandado de reintegração de posse no local ontem. Foi despejado de sua casa o autônomo da área de buffet, Marcelo de Souza Alvarenga, de 41 anos, que nasceu e sempre viveu no Horto, com sua esposa e o filho, de 15 anos. Como as outras 521 famílias que vivem no local, eles não têm para onde ir.

“Fomos notificados já, há algum tempo, para reintegração de posse, assim como outras 215 famílias, mas o que estamos tentando reverter a todo segundo é que há um estudo para regularização fundiária do local”, argumenta o homem, apoiado por toda a comunidade. “Nossa Constituição garante o direito à moradia. Se o oficial precisa cumprir ao pé da letra a reintegração, eu respeito e entendo a profissão dele, mas a nossa Carta Maior nos garante o direito à moradia. Então eu perguntei: ‘você vai me tirar daqui e me colocar onde?’. ‘A minha função é te tirar, pra onde você vai eu não sei’”, conta.

A reintegração é ilegal, segundo a advogada Mariana Medeiros, que acompanha a situação da comunidade, bem como de outras comunidades que sofreram remoções forçadas nos últimos anos. “Se o juiz queria mesmo tirar a família da casa, ele tinha que ter organizado um lugar para a família, onde ela estivesse protegida. E não da forma violenta com que a reintegração está sendo feita”, afirmou. “Para se despejar uma pessoa, há uma série de requisitos a serem cumpridos. Tem uma criança na família, então o Conselho Tutelar tinha que acompanhar, e eles não têm para onde ir”, explicou.

O juiz Guilherme Corrêa de Araújo, da 22ª Vara Federal, não atendeu o apelo da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), que enviou um ofício pedindo que ele reconsiderasse o cumprimento do mandado. Há três mandados a serem cumpridos ainda, a pedido do mesmo juiz, mas ainda sem data definida.

Centenas de moradores estavam reunidos no Horto, resistindo pacificamente, desde as seis horas da manhã de ontem. Foi por volta de meio-dia que, com a chegada do caminhão de mudança que levaria os pertences de Marcelo, que a PM, até então fazendo barreira e impedindo as pessoas de circularem livremente pelo local, começou a fazer uso da força contra moradores, todos desarmados e em clima de comoção pela situação.

Havia muitos idosos, que residem desde que nasceram no local, onde também criaram seus filhos e netos. “Um absurdo imenso, uma comunidade formada basicamente por idosos, crianças e mulheres, e eles entrarem numa truculência terrível, atingindo crianças e idosos, na cabeça, na perna, pessoas indo para o hospital. Impossível maior truculência do que essa. Um absurdo total”, revoltou-se Regina Célia da Costa Coelho, de 67 anos, que vive no Horto há 60 anos.

“É uma covardia o que estão fazendo. Eles não têm o direito de fazer isso. O pessoal todo mora aqui tem quase 200 anos. Estão forçando uma barra, desrespeitando os direitos humanos, desrespeitando os idosos que moram aqui, inclusive eu. Muitas pessoas estão passando mal, tendo que ir para o hospital, e eles soltando bombas e dando tiros de balas de borracha. Várias pessoas feridas”, desabafou, em meio ao tumulto, Uilson Resende, de 74 anos, cuja família vive toda no Horto.

“A culpa é do diretor do Jardim Botânico, que não tem sensibilidade. Somos todos moradores, aqui não tem bandido. Eles trouxeram um Batalhão de Choque, como se nós fôssemos bandidos. Aqui é uma comunidade boa numa área nobre. E eles estão tirando a gente daqui justamente porque é área nobre. E ainda tiraram nosso direito de ir e vir. As pessoas querem ir para casa e não conseguem. Um absurdo o que estão fazendo”, completou.

Uilson Resende, de 74 anos, vive com a família no Horto desde que nasceu. Foto: Luiza Sansão
Uilson Resende, de 74 anos, vive com a família no Horto desde que nasceu. Foto: Luiza Sansão

Casas construídas há mais de um século

Há quase 200 anos, os administradores do Jardim Botânico permitiram que seus funcionários construíssem suas casas na área do Horto para proteger e cuidar do local. Filha de um antigo funcionário do parque, Eda Martins de Araújo, de 73 anos, mora com sua família no local há mais de 60 anos. “Tem apoio, tem advogado, mas numa hora dessa eles vêm com truculência e não tem direitos humanos, não tem nada. A gente não consegue lutar contra quem tem dinheiro, poder”, disse. Ao seu lado, moradores se deitavam no chão em protesto.

“O pai do meu marido foi funcionário do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico durante 45 anos, ganhou o direito à moradia não por intermédio do governo nem de ninguém. Os moradores  foram trazidos para cá porque moravam todos no subúrbio e foi dado a eles o direito de construir suas casas. Então meu sogro construiu a casa dele, morreu com 92 anos de idade, há seis anos. Meu marido tem 72 anos e nós não podemos mais viver na nossa casa. Nós não temos direito à nossa moradia, à nossa Constituição. Somos tratados como bandidos, como invasores. Somos moradores pacíficos, a maioria idosos, e eles fazem essa maldade com a gente”, conta Maria Cristina Nascimento Lopes.

A vice-presidente da Associação de Moradores e Amigos do Horto, Emília Maria de Souza, de 65 anos, criticou o fato de o Instituto Jardim Botânico querer a retirada das famílias do Horto sem ter um projeto para o local e sem dar opção para a comunidade. “Não tem oferta de outro imóvel, a família simplesmente tem que sair e ficar na sarjeta, porque o presidente do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico tem que fazer a limpeza social da área. Eu pergunto: em benefício de quem? Eles alegam que têm que tirar 521 famílias para o crescimento do Jardim Botânico, mas não apresentam um projeto viável, em que a gente possa identificar a função dessa área caso eles consigam remover essas famílias daqui”, disse.

Um projeto de regularização fundiária, desenvolvido pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em parceria com a SPU (Secretaria do Patrimônio da União), garantiria a permanência dos moradores no Horto, mas foi derrubado.

“A gente estava com um projeto de regularização fundiária que foi parado. A gente quer que volte esse projeto. Porque o Jardim Botânico tem sua área delimitada há muitos anos, desde 1808. E ele diz que a área que ele quer ocupar é bem maior e que incluiu toda a comunidade. E pra quê? Eles não têm nem recurso para cuidar do que têm, estão mandando funcionários embora e essa área aqui vai ficar devastada, vão fazer o que com ela? Vão jogar moradores na rua pra fazer o quê?”, questiona Lírian Abraão, da Comissão de Moradores do Horto, que criou seus filhos e netas no local.

Lirian Abraão, da Comissão de Moradores do Horto. Foto: Luiza Sansão
Lirian Abraão, da Comissão de Moradores do Horto. Foto: Luiza Sansão

“Pessoas que moram aqui há tantos anos, que batalharam por isso daqui. Por que fazer essa ruindade com as pessoas que estão aqui, desde cinco horas da manhã, no desespero, nessa luta debaixo de sol? Para ricos andarem e consumirem? Será que eles vão saber que, aqui, onde eles pisarem, havia 523 famílias que lutaram para que isso fosse o que é hoje?”, questionou Lirian, com a voz embargada pelo choro.

“É muito difícil falar do Horto, muito difícil falar dessa luta nossa pra permanecer aqui, porque a gente sabe que tem esse direito. Tem várias pessoas que hoje não podem mais lutar, porque têm 80, 90 anos de idade, e ficam ali, paradas, tadinhas, olhando desesperadas. E a gente, que ainda tem vitalidade pra vir lutar, vem. Ver o desespero delas me faz continuar essa luta, na esperança de conseguirmos que essa comunidade continue como é, porque isso aqui é uma família”, encerrou a moradora, chorando.

O Jardim Botânico move ações individuais contra as famílias, muitas já julgadas, alegando interesse ambiental, mas na área habitada pela comunidade não há degradação ambiental e os moradores garantem que sempre cuidaram do local.

“Conservamos o local, tudo o que podemos fazer pelo meio ambiente, a gente faz. Conservamos os rios, as matas, fazemos limpeza e reflorestamento quando vemos que tem alguma área devastada”, afirmou Lírian.

“A gente sabe muito bem o que é isso aqui. É especulação imobiliária. Pobre não pode morar na zona sul, tem que morar bem longe. Mas o que estão fazendo é uma injustiça. Aqui tem idosos, até de 102 anos de idade, que é descendente de escravos, que mora aqui até hoje”, completou Lírian, que pouco depois foi impedida por agentes do Choque de passar pela barreira montada por eles, que a seguraram de forma agressiva, gerando revolta nos que estavam ao entorno.

Policiais seguram com violência a moradora Lirian Abraão, impedindo-a de passar pela barreira formada pelo Choque. Foto: Luiza Sansão
Policiais seguram com violência a moradora Lirian Abraão, impedindo-a de passar pela barreira formada pelo Choque. Foto: Luiza Sansão

Outro lado

Segundo a PM, foi “necessário fazer uso progressivo da força” contra os moradores porque estes arremessaram pedras nos agentes”.

O Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro afirmou que a ação trata do “cumprimento de decisão judicial proferida em processo ajuizado pela União na década de 80”. Segundo o órgão, cabe a ele atuar conforme o que foi determinado pelo Poder Judiciário e “zelar pela posse após a reintegração”.

Foto da capa: Tomaz Silva/ Agência Brasil

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