Pochmann: Como a Selic deforma o trabalho

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Os juros muito altos do BC convidam os capitalistas a multiplicar sua riqueza sem produzir. A taxa de investimentos despenca. A indústria e os serviços não se modernizam. Resultado: desemprego e trabalho cada vez mais arcaico e precário

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Imagem: Marcos Santos/Jornal da USP

Nem sempre as discussões em torno da definição da taxa básica de juros (Selic) e da condução da política monetária consideram os seus efeitos de curto e longo prazo em todas as atividades econômicas, bem como as consequências para o mundo do trabalho. Assim como juros elevados asfixiam o consumo e o investimento produtivo, potencializando ganhos financeiros especulativos e alimentando o rentismo improdutivo, a quantidade e qualidade das ocupações da mão de obra são negativamente atingidas.

Isso porque o trabalho mantém uma relação direta e de intensa tensão com o processo de acumulação de capital, tal qual o binômio Casa-Grande & Senzala, formulado por Gilberto Freyre – algo inseparável, ainda que em oposição, e mesmo que diferente e assimétrico, mantém-se interligado implícita e profundamente um ao outro.

No caso do capital e o trabalho, a relação é inconteste. Se, de um lado, o uso quantitativo do trabalho se encontra associado ao dinamismo econômico, de outro, o grau de sua exploração pelo capital gera profundo e contínuo questionamento por quem trabalha.

Na formulação geral da transformação do dinheiro em capital apresentada por K. Marx (O capital: crítica da economia política), por exemplo, o trabalho encontra a sua forma ou deformação estabelecida. Pela concepção marxista, a conversão do dinheiro em mercadoria e a sua reconversão pelo comércio da mercadoria em mais dinheiro (D-M-D’) constitui o movimento no tempo pelo qual o dinheiro se torna capital.

É para isso que a metamorfose do dinheiro em mercadoria conduzida pelo emprego da forma trabalho assalariado gera valor que se converte em lucro tensionado pela necessidade do pagamento de salário e de outros custos de produção. Do contrário, prevaleceria a simples circulação de mercadorias, expresso pela mera troca de dinheiro por dinheiro (D-D), sem que a valorização do trabalho se traduzisse em capital.

Mas há outra via pela qual o dinheiro se converte em mais dinheiro (D-D’), definida pela condição do capital fictício que se valoriza abreviado pela ausência da intermediação própria da produção de mercadorias. Diferentemente da gênese do dinheiro a partir da mercadoria como um produto do labor humano (relação entre capital e trabalho), o capital portador de juros permite que o empréstimo de uma soma de dinheiro se reverta em valorização de si mesmo, sem a necessidade de passar pelo processo que inter-relaciona extremos da associação do trabalho com o capital.

Neste cenário econômico, as possibilidades do trabalho ter a forma do emprego assalariado protegido por direitos sociais e trabalhistas, por exemplo, são decrescentes. O que tende a ganhar maior dimensão é a deformação do trabalho, pois distante do assalariamento e das condições de acesso aos direitos sociais e trabalhistas prevalece a precarização de uma população crescentemente sobrante aos requisitos capitalistas.

O trabalho produtivo expressando emprego assalariado protegido se encontra integrado ao processo de acumulação de capital quando a dinâmica da produção de mercadoria cria as condições de sua conversão em lucro. Na situação inversa, quando o processo de acumulação de capital ocorre liderado pela dominância do capital fictício, tende a prevalecer o trabalho improdutivo deformado, posto que se impõe o seu alijamento da dinâmica expansionista da financeirização da riqueza.

Para a realidade brasileira de longo prazo, percebe-se como durante o ciclo da industrialização nacional ocorrido entre as décadas de 1930 e 1980, a dominância do capital produtivo foi acompanhada pela elevação do nível do emprego assalariado protegido. Se, na década de 1940, apenas um a cada dez ocupados tinha trabalho assalariado protegido, nos anos 1980 esta forma aproximou-se de dois terços do total da ocupação nacional.

Desde os anos 1990, contudo, o ingresso passivo e subordinado na globalização tornou o capital financeiro dominante no processo de acumulação capitalista no país. A estagnação da renda por habitante indicou os constrangimentos pelos quais a forma trabalho assentada no emprego assalariado protegido passou a conviver.

No seu lugar emergiu o trabalho sem forma, ou melhor, a deformação do trabalho expressa pela variedade de atividades improdutivas aos requisitos capitalistas de produção. Sob a liderança do capital financeiro, os obstáculos à produção se impuseram, com a estagnação do assalariamento protegido em meio à deformação do trabalho pelo desemprego e à difusão de ocupações indeterminadas e gerais rebaixadas por atividades de contida produtividade e rendimento.

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