Pode Hannah Arendt explicar o bolsonarismo?

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Por Thiago Dias da Silva, na Cult | Ilustração: Balthaus, publicado no Portal Outras Palavras – 

Sim, mas não pela chave do “líder totalitário”. Filósofa descreveu como ninguém a ignorância esmagadora dos “indiferentes” – agora potencializada pelas redes sociais. Por isso, ela é essencial para compreender nosso drama

Tem sido comum o recurso ao pensamento de Hannah Arendt para compreender o fenômeno Bolsonaro e, de modo mais amplo, o sucesso de certo tipo de direita ao redor do mundo. O recurso é valioso e deve ser estimulado, mas enfrenta uma dificuldade específica, pois as brilhantes análises da autora levam a comparações fáceis demais com os anos 1930 e à tentação de denunciar como “totalitário” qualquer movimento autoritário. Este equívoco impede a observação precisa do que está acontecendo hoje e, diante deste risco, é necessário afirmar de saída: se tomarmos Arendt como referência, o movimento que levou Bolsonaro ao poder não é um movimento totalitário, e seu governo não parece ter muitas condições de se converter em um governo totalitário. Isto não quer dizer que está tudo bem, evidentemente, pois há indícios de que o atual governo pode se tornar especialmente autoritário ou mesmo desembocar em uma ditadura. O ponto é que falta ao bolsonarismo uma série de elementos que permitiriam caracteriza-lo como totalitário, a começar pela ausência de um líder apto e de uma ideologia totalizante, pretensamente capaz de explicar o curso da história humana desde o início dos tempos até a grande superação final.

A fragilidade do líder, notada por alguns já à época da preparação da candidatura, é hoje patente. Sua autoridade é abertamente disputada por um vice mais preparado, por filhos ambiciosos, pela autoridade técnica do ministro da Economia, pela (suspeita) autoridade moral do ministro da Justiça e pela autoridade mística e intelectual de um guru. Esta disputa no governo expressa ainda a notável falta de unidade ideológica do bolsonarismo, pois é sustentado por ao menos quatro frações muito distintas entre si: liberais, militares, um baixo clero da política institucional e uma fração meio amalucada formada por seguidores do tal guru.




O único elemento comum aos membros deste confuso balaio de gatos é a negação de tudo aquilo que o PT, justa ou injustamente, passou a simbolizar na cena pública: esquerda, sistema, corrupção, democracia, Estado, crise econômica, direitos humanos, comunismo globalista. Ou seja, mesmo a “solidariedade negativa” que cimenta o bolsonarismo é insustentavelmente heterogênea e, portanto, inteiramente incapaz de formar os conteúdos positivos de uma ideologia coesa — quanto menos totalizante! — capaz de conferir um rumo determinado ao movimento e ao governo.

Isto não significa, evidentemente, que a análise dos acontecimentos dos anos 1930 contida em As origens do totalitarismo seja inútil para a compreensão do presente. O ponto é que o livro não oferece padrões de repetição política ou histórica, mas a identificação e a descrição de elementos que cristalizaram em dois governos totalitários, o de Hitler e o de Stálin. Alguns destes elementos sobreviveram ao fim destes dois governos e, se observados de perspectiva adequada, ganham sentido para nós porque ainda estão entre nós e provavelmente permanecerão aí por longo tempo. Faz-se necessário, portanto, identificar com clareza estes elementos e revelar-lhes o sentido.

Dentre os elementos decisivos para a compreensão do presente, parece-me importante destacar o papel conferido por Arendt aos indiferentes, ou seja, à enorme massa de pessoas para as quais a cena pública normalmente não desperta interesse. A figura do indiferente se refere a um tipo marcado por uma postura moral, da qual não tratarei aqui, e por uma postura política; ou melhor, uma postura não-política. Presente em todas as classes, o indiferente é aquele que, tendo passado a totalidade de sua existência fechado sobre si mesmo e sobre os seus, ocupando-se exclusivamente com a manutenção da própria vida, permaneceu sempre distante do mundo e do que é comum a todos, de modo que ele é completamente ignorante a respeito do funcionamento do espaço público e do tempo que o estrutura. Tendo garantida aquela liberdade de tipo negativa, que separa sua casa do restante do mundo, e tendo garantida a possibilidade de trabalhar para se manter e talvez prosperar, esta figura é indiferente a tudo o que se passa “lá longe, no mundo”.

Uma mudança nesta indiferença foi fundamental para os acontecimentos dos anos 1930, pois os movimentos nazista e comunista “recrutaram seus membros nesta massa de pessoas aparentemente indiferentes e que haviam sido abandonadas pelos demais partidos por serem demasiado apáticas ou estúpidas para merecer atenção. Resultou disto que a maioria dos membros era formada por pessoas que nunca antes haviam aparecido na cena política”, escreve Arendt em As origens do totalitarismo. Ou seja, os indiferentes se tornaram um problema porque repentinamente “adquiriram apetite por organização política” e apareceram na cena pública, moveram-se de fora para dentro do espaço público.

Mas, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o problema não está na entrada destas pessoas em cena, e sim na reclusão, típica da modernidade, aos interesses e vícios privados, que até pode resultar em benefícios econômicos para o conjunto da sociedade, mas traz consigo também a formação deste enorme e indefinido contingente de pessoas que ignoram completamente o sentido da política e o funcionamento do espaço público. Ou seja, o problema está na formação contínua desta massa localizada bem ao lado da cena pública e composta por milhões de indivíduos que são, no sentido original do termo, perfeitamente idiotas – em grego, idios quer dizer “propriedade”, em oposição ao que é comum, donde idiōtēs, que é “proprietário” e, em oposição ao homem público, é “estranho aos ofícios”, portanto “não versado”, “ignorante”, “vulgar”.

Projetando sobre o espaço público o funcionamento do espaço privado, os indiferentes gritam, aos montes, que os problemas da economia nacional se resolvem se todos acordarem mais cedo para trabalhar, que as questões sociais se sanam com castigos mais severos. Insensíveis ao tempo da política, acreditam que grandes mudanças exigem apenas o tempo de demonstração de suas verdades, creem no fim instantâneo da corrupção e nos efeitos imediatos de leis moralizantes. Sem a mínima noção do que é possível realizar dentro do espaço público, acreditam que um vereador pode acabar com a nudez das artes, que o jornalismo deve entregar bandidos e corruptos à polícia, que seus filhos se tornarão bons alunos porque o presidente prometeu educação rígida.

Todo este apetite por grandes mudanças esbarra, evidentemente, na realidade do corpo político, que, para a surpresa dos neófitos, não cede imediatamente a estes empurrões. Diante da resiliência do real, os indiferentes, incapazes de distinguir o que veem, não sabem se os obstáculos vêm do status quo, de adversários ou da simples impossibilidade do que querem, e terminam por ver, em cada dificuldade, a ação de um abstrato “sistema” contra o qual é necessário “fazer alguma coisa”, do que resulta uma luta confusa contra símbolos de um sistema que não sabem exatamente o que é e nem onde está.

Arendt chama esta luta de ativismo, negando-lhe o conceito de “ação”, muito mais nobre em seu pensamento. Para a autora, a ação é uma atividade necessária porque os humanos são todos diferentes entre si e precisam estabelecer consensos em vários níveis, o que faz dela a atividade política por excelência. Mas, para que a ação efetivamente ocorra, é necessário haver um espaço em que as diferenças se tornem visíveis a quem o frequenta, um espaço capaz de receber a pluralidade de atos e palavras de agentes identificáveis; enfim, é necessário um espaço público. Os agentes, para agir de modo eficaz, devem considerar a pluralidade essencial do público, escolher o tempo certo e os meios adequados à ação, ou seja, a ação exige capacidade de se mover no espaço público, senso de oportunidade, percepção das diferenças, conhecimento dos meios, coragem e, sobretudo, disposição para sair do espaço privado em direção ao público. Ela exige, portanto, tudo aquilo que falta a quem passa a existência indiferente ao mundo.

Os indiferentes de hoje são parecidos com os dos anos 1930, mas o surgimento das redes sociais alterou o espaço em que realizam seu ativismo. Antes, a expressão de um mal-estar causado em um indivíduo por uma notícia lida no jornal à mesa do café alcançava os membros da família ali presentes, chegava a alguns colegas de trabalho, talvez a alguns amigos, e só muito raramente cruzava a linha do espaço privado ganhando aparência pública. Isto porque, para ir ao público, seria necessário sair do círculo privado, formar alianças com pessoas incomodadas e dispostas a se mexer, identificar o lugar e o momento certo de cada passo, esperar os resultados, enfrentar as resistências. Ou seja, seria necessário agir, atividade que exige muito e nem sempre vale a pena. Com as redes sociais, no entanto, surgiu uma forma de ativismo que se dá pelo consumo e compartilhamento de imagens, que tem efeitos imediatos, não exige relação com as diferenças e, embora se dê de dentro da esfera privada, garante alguma aparência na cena pública. Sem ser exatamente público nem privado, o espaço das redes sociais permite que os indiferentes, sem perturbar sua liberdade negativa, exerçam forte pressão sobre a cena pública, sobre o espaço onde se faz a política.

Nos anos 1930, foi possível a alguns líderes convocar os novatos e formar aquelas massas cujas imagens nos impressionam ainda hoje. Atualmente, o marketing político, servindo-se de certas ferramentas capazes de individualizar a oferta de produtos a consumidores, aperfeiçoou suas técnicas, tornando-as capazes de controlar mais estritamente o que se vê ou deixa de ver nas redes, do que resulta um histérico ativismo fundado em imagens fabricadas para pequenos grupos e não naquilo que está no mundo e aparece para todos os que o frequentam. Hábeis marqueteiros, de dentro de seus escritórios, têm obtido grande sucesso em excitar e acalmar grandes quantidades de indivíduos atomizados que, sem sair do espaço privado, têm dado aparência a todos os seus incômodos e, evidentemente, formulado e exigido grandes mudanças para solucionar seus problemas. A esta altura dos fatos, a pressão exercida por esta forma de ativismo sobre o espaço público é visível na radicalização, nas polarizações, na frequência das afirmações delirantes, e a eficiente manipulação de mensagens de WhatsApp na reta final da campanha de Bolsonaro (assim como o caso Cambridge Analytica) exemplifica o uso eleitoral desta forma de recrutamento.

Deste ponto de vista, a forma política de parte do bolsonarismo parece mais perigosa do que o conteúdo conservador que o anima (um conteúdo que, lembremos, não é exatamente uma novidade no Brasil), pois ela se caracteriza pela entrada na esfera pública de milhões de indiferentes excitados e convocados ao ativismo de redes sociais. Por ter como centro um indivíduo muito parecido com um indiferente, foi especialmente fácil fabricar, a partir da estupidez de Jair, uma imagem de “antissistema” e, assim, atrair os indiferentes. Mas é perfeitamente possível fabricar outras imagens (de esquerda, inclusive) capazes de exercer pressão perigosa sobre o espaço onde fazemos política. De um ponto de vista arendtiano, portanto, o bolsonarismo é uma nova cristalização de certos elementos antipolíticos do mundo moderno, pois tem, entre suas origens, a silenciosa massa de indiferentes e este recente ativismo digital que, ao que parece, também veio para ficar.

Thiago Dias da Silva é doutor em filosofia pela USP, membro do Centro de Estudos Hannah Arendt e pesquisador do Centro de Estudos Hannah Arendt da Faculdade de Direito USP

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