Por Carla Rodrigues, publicado em Projeto Colabora –
O luto por Marielle Franco é também por todos os outros assassinatos que a precederam
Pode uma subalterna falar? Não, responde a filósofa feminista Gaiatri Spivak, ao constatar a exigência de superar o lugar de subalterno para “ter direito à voz”. Pretendo me valer dessa pergunta para pensar sobre alguns dos paradoxos que marcam a execução da vereadora Marielle Franco. Na nota de rodapé de um artigo dela, leio sobre o início de sua militância contra a violência de Estado – essa que todos os dias mata pessoas negras e moradores de favela –, deslanchada quando viu sua melhor amiga morrer assassinada num tiroteio no Complexo da Maré. Passo a supor que aquela morte foi um trauma, não buscando uma interpretação psicológica – que por inúmeros motivos eu não estaria autorizada a fazer – , mas seguindo a perspectiva política atribuída ao trauma pelo filósofo Jacques Derrida, ao se referir ao 11 de setembro. Trauma no seu sentido político é aquilo que nos lança no insuportável medo do futuro. Por ter acontecido algo de inominável, qualquer coisa pode vir a acontecer.
A jovem Marielle fez o percurso necessário para superar sua condição de subalterna: cursou o pré-vestibular comunitário na Maré, criado para enfrentar o bloqueio histórico do ingresso dos moradores da favela na universidade; obteve bolsa de estudos para cursar Ciências Sociais na PUC-Rio; defendeu uma dissertação de mestrado no programa de Administração Pública da UFF. Porque nenhuma dessas conquistas foram suficientes para que ela superasse sua condição de subalterna? Está aqui o ponto central da minha argumentação. A perversidade da estrutura do racismo na sociedade brasileira quer nos fazer crer que a execução de Marielle se deu por não haver nada que uma mulher negra possa fazer para vencer sua condição de subalterna, de vulnerável, de vida descartável.
No ano passado, 42 pessoas foram assassinadas no Complexo da Maré. Marielle, fosse uma anônima entre os 140 mil moradores que ali vivem, poderia ter sido uma dessas vítimas, assim como sua amiga de juventude. Não foi, e sua vitória como vereadora era a chance de que outras tantas pessoas parassem de morrer nesse extermínio permanente dos pobres e negros dessa cidade, desse país, desse continente.
A linda mulher negra que tinha se tornado representante dessa cidade e imagem da resistência morreu executada, saindo de um debate cujo título era “Jovens negras movendo as estruturas” (ao invés de apontar o dedo a culpados individuais, eu poderia acrescentar, mas esse seria tema para outro artigo). Marielle, cujo mandato deveria lhe conferir “imunidade parlamentar” – esse privilégio tão almejado por certos tipos de políticos –, morreu por ter transformado em lugar de resistência seu gabinete na Câmara. Uniu vulnerabilidade e resistência numa equação potente: ao escolher não mobilizar vulnerabilidade para fazer resistência, talvez porque soubesse que empoderar mulheres negras era mais importante do que vulnerabiliza-las – como os inimigos já fazem –, morreu por que sua capacidade de resistência a tornou de novo vulnerável.
A cena de seu velório público, na Cinelândia, era expressão da distribuição desigual do luto público. Enquanto lá fora uma multidão de anônimos chorava sua morte, enquanto a cidade parecia sair de sua apatia e normalidade, enquanto jovens militantes negras e feministas não paravam de chegar, lá dentro não havia sinal de prefeito, governador ou representante do governo federal que se dignasse a enlutar a perda de uma vereadora. Eleita com 46 mil votos, foi como se, mesmo sendo uma parlamentar, representante da cidade – e que portanto merecia declaração oficial de luto em todas as esferas de governo – Marielle não tivesse sido autorizada a deixar para trás os marcadores de negra, mulher, lésbica, moradora de favela, esses que normalizam a violência de Estado contra certas vidas em nome da proteção de outras.
O velório público – “Marielle, presente” – foi o reconhecimento de que sua vida importa, e embora importe tanto quanto todas as vidas brutalmente perdidas no genocídio cotidiano, também é preciso perguntar porque só a vida de Marielle pode ser enlutada? Tantas e tantas outras se foram e se vão anônimas, todos os dias, como meras perdas individuais para cada família. Daí a importância de estar na ruas, como nesta terça-feira, no ato ecumênico a ser celebrado sete dias depois da sua morte, e recuperar a ligação entre luto e estado de exceção do qual nos fala o filósofo Giorgio Agamben. O luto por Marielle é também por todos os outros assassinatos que a precederam.
Parece fundamental repetir, para ir além, o argumento do filósofo Michel Foucault: o racismo é aquilo que autoriza o Estado a matar. A luta de Marielle era dupla, assim como será duplo o trabalho de luto por ela. Primeiro, é preciso continuar protestando e enfrentando essa suposta autorização para matar. Depois, ainda é necessário confrontar o crime no Estado, já que o Rio de Janeiro sob intervenção federal militar é o melhor exemplo do preciso diagnóstico de Vinicius Freire: “Demos de barato a institucionalização do crime, que domina partes do sistema de segurança e de presídios, ocupa cadeiras de vereadores e mesmo prefeituras”. O que quer o crime institucionalizado no Estado, em geral, e no estado do Rio de Janeiro, em particular, talvez seja uma pergunta política para a qual ainda não se tem resposta.
Por fim, a execução de Marielle acontece 50 anos depois do assassinato, em março de 1968, do estudante Edson Luís. Naquele ano que não acabou, as crescentes revoltas populares contra a morte dele pela PM culminaram na decretação do AI-5 e no recrudescimento da repressão, seja do Estado do crime, seja do crime no Estado. 2018 mal começou e começou mal. Do trauma político iniciado em 2013 e renovado agora, só se sabe que não há nada garantido no futuro. Por enquanto, só se sabe que as subalternas ainda não podem falar.
Foto da Capa Mídia Nimnja