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No último dia 17 de janeiro, mais uma reintegração de posse teve desfecho violento em São Paulo. As 700 famílias que ocupavam um terreno em São Mateus, na zona leste, foram obrigadas a deixar o local por determinação judicial, cuja decisão foi cumprida sem qualquer tipo de mediação e com uso de força policial.
Episódios como esse já são parte do cotidiano da capital e de outras cidades há bastante tempo. Basta lembrar de casos como o do Jardim Raposo Tavares (2016), do Hotel Aquarios, na Av. São João (2014), ou do emblemático Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos (2012), cujas remoções ocorreram de forma bastante violenta, implicando em confrontos graves entre a polícia e os moradores. Além desses casos que ganharam notoriedade, há centenas de outros com desfechos igualmente preocupantes.
A forma como essas reintegrações têm sido cumpridas, com abordagens violentas e falta de alternativa ou assistência às famílias, violam tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Um dos mais significativos é o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[1], que afirma o direito à moradia adequada como um direito humano em seu artigo 11.
Como decorrência desse pacto, o Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, interpreta que as remoções devem ser medidas excepcionalíssimas e jamais podem ocorrer de maneira a violar direitos da população. Muitos outros tratados do qual o país é signatário também consagram o direito à moradia para segmentos específicos comumente impactados em situações de conflito territorial, como é o caso das crianças e das mulheres.
Além do direito internacional, houve uma robusta produção legislativa nos últimos anos que consagrou o direito à moradia, desde o artigo 6º da Constituição, passando pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e demais normas infraconstitucionais, até portarias ministeriais e resoluções de órgãos colegiados. Todas essas normas protegem o direito à moradia e prestigiam soluções consensuais de conflitos.
É o caso, por exemplo, da Resolução 87/2009 do Conselho Nacional das Cidades e da Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Esse repertório jurídico desmonta o argumento ainda comum no Poder Judiciário de que as decisões que determinam remoções forçadas estão embasadas na legalidade.
No caso mais recente, em São Mateus, o juiz da 4o Vara Cível do Foro de Itaquera, Dr. Carlos Alexandre Böttcher, concedeu liminar de reintegração de posse ainda em setembro de 2015. A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em agravo de instrumento interposto pelas famílias.
Nas duas instâncias, porém, ignorou-se o fato de que a empresa requerente não conseguiu demonstrar claramente a existência de posse. Além disso, não foi atendida determinação do § 1º do art. 565 do Código de Processo Civil, que impõe a realização de audiência de mediação nos casos de liminares concedidas há mais de um ano.
Mas por que o Poder Judiciário continua decidindo de forma a promover desrespeito e violações de direitos?
Em parte, porque reproduz uma visão criminalizadora do senso comum de que as famílias são invasoras e, por isso, não seriam merecedoras de proteção do Estado quanto a seus direitos à moradia, à integridade física e psicológica, ao devido processo legal e à ampla defesa.
Também porque o tratamento dos conflitos tem sido historicamente realizado sob a lente estrita do direito privado, privilegiando a proteção do direito de propriedade mesmo nos casos em que flagrantemente não se verifica o cumprimento de sua função social. Assim, cria-se uma hierarquia perversa segundo a qual mais vale uma propriedade sem função do que todos os demais direitos fundamentais da população afetada pela decisão, o que distorce completamente a lógica constitucional.
Cabe lembrar que a propriedade foi protegida pela Constituição de 1988 não como um direito absoluto, mas como uma relação jurídica complexa que cria obrigações também ao proprietário. Dentre elas, a necessidade de atender às exigências fundamentais de cumprimento da função social e ambiental. A defesa abstrata do instituto, desconsiderando seu contexto histórico e geográfico, é um dos principais motivos que levam a decisões que resultam em violações de direitos.
Os imóveis objeto de litígio nos casos citados situam-se em um contexto urbano e isso não pode ser ignorado. Em todos eles, um elemento comum é o fato de que se encontravam abandonados e sem uso, descumprindo o mandamento constitucional. Nesse sentido, determinar a reintegração de posse liminarmente, sem assegurar ampla defesa e ignorando o elemento da função social é premiar a conduta ilícita dos pretensos proprietários.
O conflito fundiário urbano, portanto, não pode ser reduzido a uma disputa particular pela propriedade. Trata-se de um conflito com gênese profunda na injustiça sócio-territorial resultante de nossa estrutura fundiária. Por isso, sua solução também não deve ter fundamento exclusivo no direito privado, devendo-se considerar as normas de caráter público do direito constitucional e urbanístico.
É evidente que existem muitas decisões judiciais que demonstram um domínio mais complexo da realidade social e jurídica, de forma que nem todos os juízes reproduzem uma visão estritamente privatista. No entanto, esse não é o padrão decisório majoritário dos Tribunais. Em pesquisa recentemente publicada pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU, foram analisados 193 acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferidos desde 2009, com temas relacionados à política urbana[2], cujos resultados evidenciam grandes desafios.
Uma quantidade significativa das decisões estudadas referia-se a disputas pela posse da terra urbana, tendo em um dos pólos da ação pessoas de baixa renda que necessitam de assistência judiciária (62%). Entretanto, nenhum dos processos foi classificado como sendo conflito fundiário urbano. Há uma espécie de “miopia” do Poder Judicário, que olha para o conflito de forma distorcida.
Apesar de grande incidência de ações possessórias e de litígios envolvendo imóveis vazios ou sem utilização, em apenas 15% dos casos o princípio da função social da propriedade foi utilizado para fundamentar as decisões.
A pesquisa revelou ainda um preocupante desconhecimento por parte dos julgadores das diretrizes gerais da Política de Desenvolvimento Urbano, previstas no artigo 2o do Estatuto da Cidade, lei que já conta com mais de 15 anos de vigência.
Outro dado preocupante diz respeito a vistoriais ou inspeções judiciais, que ocorreram em menos de 10% dos casos. As decisões, portanto, foram baseadas exclusivamente nas informações trazidas aos autos do processo, ignorando a realidade das ocupações. Nesse tocante, cabe destacar a sobrecarga de processos, o que dificulta qualquer iniciativa por parte dos magistrados para realização de inspeções.
Henrique Frota é advogado, pesquisador e professor universitário. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Secretário Executivo e integrante da equipe Direito à Cidade do Instituto Pólis. Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU.
[1] Adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, e com adesão do Brasil desde 1992.
[2] Publicação disponível em: https://goo.gl/EOqzON