Conversar com o poeta e biólogo moçambicano Mia Couto faz bem à saúde. Nesta entrevista exclusiva ao Correio, ele traça com leveza e contundência um cenário poético e, ao mesmo tempo, real da pandemia. “O problema, ou melhor, os problemas, foram os fatores de desumanização que estão inscritos nos modelos de fazer economia e política (atualmente). Há quem acredite que tudo isso vai ser repensado depois desta epidemia. Mas eu não sou tão otimista”, afirma. “A imbecilidade não será vencida num virar da folha”, acrescenta. Mas destaca: “É possível que valorizemos de forma mais justa quem está à nossa volta e são ofuscados pelo brilho das carreiras de sucesso: os médicos, os enfermeiros, os professores, os catadores de lixo, os jornalistas, todos aqueles que neste momento de crise se revelam com toda a dimensão humana das suas profissões”.
Qual é o espaço da poesia — e da literatura, em modo geral — nesses tempos de dúvidas e de medo? O medo é perigoso? Podemos enfrentá-lo com elegância poética?
O espaço da poesia sempre foi encontrado nos interstícios, nas fendas do muro, em contracorrente. Tudo depende, afinal, do que se entende por poesia. Se poesia constituir uma visão alternativa do mundo, e não apenas uma forma de arte, então ela terá poderes para enfrentar este mundo. Às vezes, tudo o que resta é a palavra. Essa palavra é apenas o rosto de algo que Drummond chamou de um sentimento do mundo. A poesia pode convocar o desejo de um outro mundo que seja mais nosso. É preciso não esquecer que obras de referencia mundial, como A peste, de Albert Camus, foram produzidas como forma de resistência perante um medo coletivo que é suscitado pelas epidemias.
A reclusão pode ser inspiradora? A matéria-prima da poesia são as pessoas, o relacionamento entre desejos e anseios.
Como trabalhar isso agora? Por outro lado, a reclusão também pode ser inibidora?
Não creio que formas impostas de reclusão possam estimular a inspiração. A reclusão (isolamento social) não é nunca inspiradora se significa o desemprego e a miséria (como é o caso para muitos criadores de cultura). Não é esta reclusão imposta e desesperada que a maior parte dos criadores deseja para produzir arte.
Você acha que o ser humano estará melhor depois da pandemia? Será mais solidário? Ou continuará o mesmo, com suas falhas na alma?
O problema nunca foi o chamado ser humano. O problema, ou melhor, os problemas, foram os fatores de desumanização que estão inscritos nos modelos de fazer economia e política. Há quem acredite que tudo isso vai ser repensado depois desta epidemia. Mas eu não sou tão otimista. O que talvez seja reforçada é a defesa cega das receitas neoliberais que advogam o emagrecimento (a desconstrução) do Estado e fortalecimento dos mercados. O que precisa ser questionado, em particular, é o desprezo dado a setores públicos da saúde e da educação.
Mas a imbecilidade não será vencida num virar da folha. A maioria dos que escolheram lideranças imbecis muito provavelmente continuará apoiando no futuro essas lideranças populistas e demagógicas. O medo não ajuda a vencer a mentira. Pelo contrário, o medo fundamenta a escolha de soluções messiânicas. É por isso que os “salvadores do mundo” adoram o medo. E fazem da gestão eterna de crises o alimento da sua longevidade. O Brasil tem uma experiência dolorosa nesta produção de um poder que vive da eternização da crise e da permanente polarização que mantém o país numa espécie de estado de guerra.
No Brasil, o presidente e uma elite atrasada negam a dimensão dessa pandemia, que deve ceifar milhares de vidas… De onde vem essa falta de empatia?
Não sei se é uma falta de empatia. Mas é uma empatia pelo obscuro, pela negação da ciência e da luz, pela ganância do poder autoritário. Há governantes brasileiros que negam que a Terra seja redonda. Como esperar que acreditem na progressão epidemiológica de um vírus?
Pelo mundo, animais voltam a circular em áreas que pareciam estar perdidas para o homem. Da minha janela, percebo pássaros nunca vistos em Brasília. O vírus, como destaca o italiano Domenico de Masi, nos obriga a repensar a relação com a natureza. Como, pelo olhar poético, se faz isso?
É preciso ter atenção quando definimos o que é a natureza. A natureza não existe fora de nós. Não mora apenas onde há árvore e passarinho. Nós, com as nossas cidades, somos também a natureza. O vírus que nos atingiu é parte dessa natureza. Aliás, uma das razões que levou a desvalorizar o estudo dos vírus foi a nossa visão antropocêntrica do que é importante no mundo natural. Muito pouco sabemos dessa criatura invisível que virou o mundo do avesso. Durante anos, houve, é claro, dificuldades técnicas para conhecer o mundo dos vírus: era preciso aparelhos de amplificação visual, era preciso uma tecnologia de intervenção molecular e genética que só agora dispomos. Mas havia uma arrogância de considerar importante apenas o que é mais próximo da nossa espécie. Falo aqui como biólogo: nós quase nada sabemos sobre os vírus e as bactérias. E essas duas entidades são a base da própria vida. Dizemos que essas criaturas são invisíveis apenas porque nós não as podemos ver. Chamamos-lhe de micro-organismos. Custa-nos a admitir, mas quem controla a existência e a evolução da vida são essas criaturas ditas invisíveis. Não somos nós. Essas criaturas estão, nesse sentido, mais próximas de Deus do que nós.
Acrescento outro assunto que gostaria que fosse repensado, que é a consideração que mantemos sobre a nossa condição atual. Nós achamo-nos modernos, mas estamos ainda muito colados a considerações medievais, quando ocorre este tipo de fenômeno. Vem de cima uma urgência em substituir o entendimento pela culpa. Há que encontrar culpados do mesmo modo como na Idade Média se expiaram culpas sobre forças do mal. Isso que é atávico, vem de cima. Há que condenar um outro. Mas também agora se tornou comum a autoflagelação. Enviaram-me agora muitos vídeos em que a natureza “falava” conosco, a humanidade, para nos culpar desta pandemia. A mensagem era a seguinte: maltratamos a natureza e eis o resultado.
Isso tem alguma coisa de verdade, mas a grande verdade é que as pandemias ocorreram ciclicamente desde a pré-história da nossa espécie. A luta pela defesa do ambiente merece todo o respeito, mas deve ser fundada em bases científicas.
Com o isolamento social, nos tornamos mais nostálgicos… Voltamos a ter tempo para pensar nas pessoas que éramos, na utopia… Há um embate claro entre o homem dito “produtivo” (que executa tarefas) da pré-pandemia e o homem “contemplativo” (e potencialmente
criador) de hoje. Quem prevalecerá?
Primeiro, o isolamento social tornou-se nostálgico para quem se podia, como eu, dar-se ao luxo da nostalgia. Mas há quem corre o risco de não poder sobreviver com esse isolamento. A maior parte das famílias moçambicanas que vivem no limiar da pobreza não teriam tempo de chegar à nostalgia numa condição de isolamento total e obrigatório. Morreriam antes disso.
Em segundo lugar, não acredito nessa divisão entre um passado produtivo e um presente contemplativo. A questão é que apenas para uma pequena minoria é possível combinar produção e contemplação. O mundo tem que ser virado do avesso para que esse direito de ação e introspecção seja privilégio de todos. Mas é preciso mais do que isso: é preciso interrogar essa ação e essa contemplação. Quando agimos é no interesse de quem? Na maior parte das vezes, agimos ao serviço de ditames sutis de um patrão invisível.
José Saramago falava dessa cegueira coletiva. As novas ditaduras já não precisam de ditadores. Usam-nos, depois de nos roubar a visão crítica do mundo. Ainda agora há apelos para voltar à normalidade (sair do isolamento social). A economia deve continuar, dizem. Mas que normalidade e que economia estamos a falar? Num país como Moçambique a aplicação cega das soluções implementadas em outros países seria um desastre social e humanitário de proporções gigantescas. A maior parte da nossa sociedade sobrevive na esfera da economia informal. Essa economia continua a ser invisível aos olhos dos governantes, ainda que ela ocupe a maioria da população.
Pobres e excluídos serão as principais vítimas dessa doença. As políticas públicas — tanto na Europa, como em países da África e no Brasil — não focam no menos favorecido. O vírus veio escancarar a tragédia silenciosa provocada por ideologias liberais. O que fazer?
Sim, o caminho sempre esteve aí. Poucos o queriam ver. Espero bem que uma larga maioria das pessoas entenda que há de empreender mudanças radicais. Não se trata mais de escolher pessoas diferentes nas eleições. Trata-se de apostar numa nova ordem em que as instituições do Estado não sejam conduzidas pelos desígnios do mercado. Um mercado “livre” aprisiona os cidadãos tanto como a mais cruel das ditaduras.
Sei que você não gosta de falar sobre “processo criativo” (risos), mas escrever precisa de disciplina, como Manoel de Barros, que gostava de produzir de manhãzinha, no escritoriozinho e, depois, uma bebidinha (risos). Como é sua rotina criativa?
Não tenho rotina. Não separo a criação do resto do que faço. Só me interessa a profissão de biólogo enquanto for capaz de me apaixonar por novas perspectivas de olhar o processo da vida e os seus mistérios. A ciência que, uns querem exata, eu quero aberta e tão criativa como a literatura. Em geral, trabalho de manhã numa empresa moçambicana que faz estudos de impacto ambiental. À tarde, trabalho ou em casa escrevendo, ou numa fundação cultural que eu e os meus irmãos criamos em Maputo para apoiar a criação artística de jovens moçambicanos. Sou dado a insônias e é, sobretudo ao longo da noite, que vou escrevendo textos literários.
Você teve uma relação de amigo com o pai (a cena de vocês dois jogando pedras na linha de trem, ainda hoje me comove). Qual sua relação com os filhos e netos?
Acho que é boa, eu nasço dela, dependo dela para me conservar vivo e adolescente. Não tenho nenhuma receita, a única coisa que faço é me apresentar sem nenhuma outra verdade que não seja o gosto da partilha e o relacionar-me com os filhos e netos sem nenhum argumento de autoridade. Exponho as minhas fragilidades e os meus conflitos porque foi assim que o meu pai fez. Ele não fez o papel de “pai”. Ele foi uma pessoa que nos ensinava a ser pessoas.
É difícil traçar cenários, mas que lição devemos tirar de tudo isso?
Há mil lições. Primeiro, não é verdade, como se queixa o Donald Trump, que não se tenha previsto pandemias exatamente deste tipo. Outras virão. E irão requerer respostas mais robustas e globais. Já falei de alguns recados que devem ser levados a sério se não quisermos reagir de forma despreparada. E repare: uma das razões porque as pessoas portadoras deste vírus é a resposta desproporcionada do nosso sistema imunitário. O mesmo se passa com a resposta a nível da sociedade: o único remédio que nos resta provoca consequências econômicas e sociais terríveis. Uma das grandes lições de que não falei é o valor da cooperação. Talvez seja algo apenas episódico, mas é uma estimulante novidade haver laboratórios e empresas a trocar informações e conhecimento. Esses segredos eram considerados a “alma do negócio”.
Outra aprendizagem: a pesquisa científica deve responder às necessidades da humanidade e não focada na busca do lucro imediato. É possível que valorizemos de forma mais justa quem está à nossa volta e são ofuscados pelo brilho das carreiras de sucesso: os médicos, os enfermeiros, os professores, os catadores de lixo, os jornalistas, todos aqueles que neste momento de crise se revelam com toda a dimensão humana das suas profissões.
Brasília comemora 60 anos. Criada para ser a capital da esperança ainda hoje luta para preservar a utopia da igualdade e da beleza. Qual foi sua primeira impressão ao chegar à cidade?
Foi de estranheza. Parecia que eu não estava no Brasil. E parecia-me que o espaço público tinha sido submerso. Eu não sabia andar na rua. E a rua não sabia andar em mim. A cidade não me abraçava. Nas vezes seguintes, essa estranheza foi se atenuando. Mas não está resolvida. Preciso voltar. As cidades são como os livros: só existem quando as revisitamos.