Polícia do Rio desrespeita as comunidades e afronta o STF

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No abril do terror, quatro operações no Complexo da Maré levam pânico à população, deixam alunos sem aula e desrespeitam regras determinadas pelo Supremo

Compartilhado de Projeto Colabora




Imagine acordar ao som de tiros e até bombas. Ou ser surpreendido por esta trilha sonora de guerra quando se está levando os filhos para a escola ou saindo a caminho do trabalho. Esse trauma foi vivido, neste abril de 2023, por milhões de ucranianos, alvos dos ataques russos, ou pela população do Sudão, refém de uma guerra interna entre grupos armados. E também pelos 140 mil moradores do Complexo de Favelas da Maré, um conjunto de 17 comunidades pobres, às margens da Baía de Guanabara, onde, em apenas um mês, a polícia do Rio de Janeiro promoveu quatro grandes operações, reproduzindo este cenário de terror.

Não é, naturalmente, novidade que os agentes da segurança pública, pagos pelo estado, levem o pânico aos moradores de favelas com suas ações truculentas, protagonizadas por fuzis, blindados e helicópteros – como se não bastasse a rotina de viver em regiões controladas por criminosos, traficantes ou milicianos. Vão completar 40 anos do anúncio de um candidato, futuro governador, que acabaria com a violência em seis meses. Desde então, esse tipo de operação policial barulhenta, cinematográfica, violenta e, quase sempre, mortal vem se repetindo sem qualquer resultado a não ser ilustrar o fracasso da polícia do Rio e das políticas de segurança no estado.

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O abril de terror policial na Maré chama a atenção pelo impacto numa comunidade tão grande, pelo desprezo e desrespeito dos agentes de insegurança pública aos moradores, a quem deviam servir, e pela afronta sistemática à decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou cuidados e restrições a operações policiais nas favelas – não há registro de ações com fuzis, blindados e helicópteros em condomínios da Barra da Tijuca ou nas ruas de Copacabana ou Leblon. Revisitar esses quatro dias ajuda a ilustrar como a polícia – que devia proteger e servir – trata a população da Maré.

Eram 5h30 da manhã, de quarta-feira, 5 de abril, quando dezenas de agentes da Polícia Civil e do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar invadiram a favela em busca de criminosos envolvidos com roubos de cargas – de acordo com as informações oficiais. A previsível e intensa troca de tiros surpreendeu pais e mães que se preparavam para sair para o trabalho ou levar os filhos para a escola. Grupo criminoso se escondeu dentro de uma escola na Nova Holanda, uma das favelas da Maré, cercada pela polícia. Com medo de nova chacina (a polícia do Rio matou, em apenas três operações em 2021,quase 50 “suspeitos”), moradores foram ao local, armados de celulares, que flagraram a invasão da instituição de ensino pelos blindados da PM. Pelo menos, 21 pessoas foram presas neste dia em que oito mil estudantes de 21 escolas da Maré ficaram sem aulas e o atendimento nos postos de saúde foi suspenso.

Policiais militares em operação no Complexo da Maré: quatro operações em abril levaram pânico às comunidades, deixaram milhares de estudantes sem aula e afrontaram decisão do STF (Foto: Patrick Marinho / Maré de Notícias - 26/04/2023)
Policiais militares em operação no Complexo da Maré: quatro operações em abril levaram pânico às comunidades, deixaram milhares de estudantes sem aula e afrontaram decisão do STF (Foto: Patrick Marinho / Maré de Notícias – 26/04/2023)

As prisões, aparentemente, não tiveram qualquer resultado prático – a julgarmos pelas ações da própria polícia do Rio. No dia 14 de abril, desta vez, no fim da tarde de sexta-feira, operação policial – comandada pela Delegacia de Furtos e Roubos de Cargas, com apoio da PM, provocou mais um previsível tiroteio exatamente no horário em que crianças estavam saindo das escolas e muitos trabalhadores chegando em casa. O objetivo – vejam só – era recuperar carga roubada levada para região pela quadrilha especializada no crime, que em nada havia sido impactada pela operação anterior. A deputada estadual Renata Souza contou que participava de evento na Casa de Mulheres da Maré, quando os tiros começaram: quase 70 pessoas apavoradas buscaram abrigo debaixo de mesas e outros móveis – as testemunhas disseram que muitos disparos vinham do helicóptero da Polícia Civil. tiveram que se abrigar por conta dos disparos. Segundo elas, os disparos partiram do helicóptero da Polícia Civil. Após algumas horas de terror, a carga foi recuperada; nenhum criminoso foi preso.

O uso de helicóptero como plataforma para ação armada da polícia está proibido por decisão do STF na  Arguição de Descumprimento e Preceito Fundamental, a chamada APDF das Favelas, impetrada por organizações da sociedade civil, devido ao aumento de operações policiais violentas nas comunidades do Rio durante a pandemia. O Supremo também determinou  a presença de ambulância para socorro a possíveis vítimas, a preservação do perímetro escolar e o uso de câmeras nos uniformes dos agentes policiais, além de vetar ações em horário de entrada e saída das escolas e de estabelecer comunicado prévio ao Ministério Público.

Tudo isso foi ignorado e desrespeitado pela PM na mais escandalosamente ilegal das operações policiais na Maré, ocorrida na madrugada de segunda-feira, 17 de abril – operações noturnas são evidentemente proibidas pelo STF. Embora espalhafatosas, essas ações não costumam ser batizadas. Esta, entretanto, deveria se chamar operação vingança – já que seu único objetivo foi atacar os supostos responsáveis pelo assassinato do cabo Victor Hugo Lustoza Barros, morto por bandidos em fuga na Avenida Brasil. Não havia responsável identificado, não havia mandato judicial: era o começo da madrugada, com gente ainda na rua.  As cenas de terror e pânico se multiplicaram pelas redes sociais, acompanhado da trilha sonora dos tiros de fuzis de policiais e bandidos e das bombas de efeito moral da PM. Resultado: dois mortos, dois feridos e oito mil crianças sem aula na segunda-feira.  O inquérito sobre o homicídio do cabo Victor Hugo ainda não tem qualquer indiciado.

Como para ilustrar a inutilidade de suas atividades na Maré, a polícia do Rio, na última semana de abril, reapareceu com seus fuzis, blindados e helicópteros no complexo de favelas. promovendo mais uma previsível troca de tiros, com o objetivo de … “coibir o roubo de cargas”.  O Bope apreendeu um fuzil, uma espingarda calibre 12, uma pistola e 11 granadas na comunidade da Nova Holanda. Para isso, 12 mil alunos ficaram sem aulas e duas clínicas de famílias suspenderam o atendimento aos pacientes. Levantamento da Redes da Maré aponta que os estudantes da região perderam 15 dias de aula em 2022, em razão das operações policiais. Pela atividade em abril, a polícia do Rio está disposta a ajudar a superar essa infeliz marca educacional em 2023.

Incursões em comunidades pobres fazem parte de uma duvidosa rotina da PM do nosso estado Sei disso porque, diariamente, a CBN Rio se presta ao triste papel de divulgadora de atividade policial, “informando” que a polícia faz operações nas comunidades tais e tais – acompanhada dos números, sempre oficiais, de apreensões, prisões ou mortes. Por vezes, já ouvi a CBN São Paulo para ver se a rotina policial tem o mesmo acompanhamento – não tem: ou a PM paulista não trabalha (os números da criminalidade lá são mais baixos que aqui) ou não divulga sua rotina ou não encontra quem se preste a divulgá-la. Pelos relatos da CBN Rio, o trabalho mais relevante da PM aqui é fazer operações nas favelas – esses policiais fardados que rotineiramente buscam prevenir e reprimir crimes em outras áreas não merecem atenção.

Poucas comunidades da Região Metropolitana do Rio reúnem tantas organizações da sociedade civil como o Complexo da Maré, onde cresceram a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, e a deputada Renata Souza. Em março, quando a morte de Marielle, completou cinco anos, a Redes Maré lançou a sétima edição do boletim Direito à Segurança Pública na Maré.  O relatório aponta que, após três anos de diminuição das operações policiais no conjunto de favelas da Maré, em função, especialmente, das ações judiciais da sociedade civil, houve, em 2022, um aumento de 145% no número de intervenções policiais na Maré. O número de vítimas também subiu: em 2022, foram 27 mortes decorrentes das operações dos agentes da insegurança pública na região. O abril de terror policial indica que, os números do ano passado, são uma triste tendência para 2023.

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