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Helicópteros usados pela PM do Rio são considerados “instrumentos de terror” por especialistas em segurança pública. Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images

ENQUANTO VOCÊ LÊ estas linhas, o helicóptero esquilo Fenix 2, que custou a bagatela de 20 milhões de dólares à época da compra, há mais de uma década, apodrece nos quintais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Sem decolar desde 2018 por falta de manutenção, ele se torna dia após dia um dos pedaços de sucata mais caros da administração pública carioca.




Eu sei para onde você acha que esse texto vai. Desperdício de dinheiro público, o Rio está perdido e xá lá lá lá. Mas a verdade é que ter menos uma aeronave da polícia em funcionamento nos céus do estado é, neste momento, um alívio.

São menos chances de repetirmos situações como a que ocorreu na Maré, na zona norte do Rio, em setembro 2019. Na época, policiais passaram cerca de uma hora atirando a partir de um helicóptero contra uma das favelas do complexo numa desastrada tentativa de prender o traficante Thiago da Silva Folly, o TH. No caminho dos cerca de 480 tiros disparados? Uma escola e, é claro, os moradores da comunidade, aterrorizados. De TH ainda não se tem notícias.

O descontrole vai além das balas que vem do céu e levou o Supremo Tribunal Federal a proibir a realização de operações policiais em favelas durante a pandemia – com ou sem helicópteros. Em liminar publicada em 5 de junho, o ministro Edson Fachin determinou que as operações só podem ser feitas em situações excepcionais, que deverão ser justificadas por escrito e comunicadas imediatamente ao Ministério Público do Rio de Janeiro.

A medida atendeu a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, para os íntimos –, do PSB, que questiona a política de segurança do “atirar na cabecinha” do já finado governo de Wilson Witzel.

Com menos operações da polícia, menos pessoas morreram em supostos confrontos com a polícia e, surpresa, a tal criminalidade que justificaria essas incursões também diminuiu, como mostram dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, o Geni, e do Datalab Fogo Cruzado, no relatório “Operações policiais e ocorrências criminais: Por um debate público qualificado”.

Nos 31 dias imediatamente posteriores à decisão do STF, houve reducão de 47,7% dos crimes contra a vida, que incluem homicídios dolosos, morte por intervenções de agente do estado, roubo seguido de morte e lesão corporal seguida de morte, em comparação com a média do mesmo período entre 2007 e 2019. Já os crimes contra o patrimônio – roubo de veículo, roubo de rua e roubo de carga – caíram 39%.

Segundo o professor da UFF Daniel Hirata, pesquisador do Geni e um dos responsáveis pelo levantamento, não há nenhum indicativo que as operações de fato sirvam para diminuir a criminalidade. Pelo contrário.

A ADPF, segundo ele, faz o que uma política de segurança responsável deveria fazer ao estabelecer limites, hoje inexistentes, para a atuação policial. A ação solicita, entre outros pontos, a formulação de um plano de redução da letalidade policial, que sejam evitadas ações perto de escolas e o uso de helicópteros como plataformas de tiro e “instrumentos de terror”.

Como todo dia no Rio é um dia excepcional, a liminar de Fachin funcionou. Até outubro. Ignorando o STF, a polícia voltou à carga com tudo e realizou ao menos 38 operações naquele mês. Foram 145 mortes por intervenção policial, quase o triplo das 52 registradas em setembro. E novembro, dezembro e janeiro não foram muito diferentes.

Em entrevista ao jornal O Globo, o delegado Allan Turnowski, atual secretário da Polícia Civil do Rio, declarou que a matança da polícia e a profusão de operações mostram, na verdade, que o estado está alinhado ao STF. Segundo ele, a polícia do Rio trabalha o tempo todo em casos de exceção. “A violência no Rio não é um caso de exceção? Quando o STF afirma que a polícia só pode trabalhar em situações de exceção, estamos totalmente respaldados”, afirmou Turnowski, denunciado por corrupção e envolvimento com bicheiros e milicianos.

Essa noção elástica de exceção levou a Defensoria Pública do Rio e outras organizações de direitos humanos a solicitarem ao STF em fevereiro o estabelecimento de “parâmetros para a devida compreensão do conceito de absoluta excepcionalidade”, já que o dicionário da polícia do Rio parece divergir do usado por Fachin. Em novembro, o ministro já tinha pedido explicações para o vale-tudo no estado.

Em nota técnica, a Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos defende que essa exceção se limite às circunstâncias em que a vida dos moradores esteja de fato em risco. Mas esse parece ser sempre o último elemento na conta da polícia. Oito meses após a decisão STF, a PM saiu armada para a rua até para encerrar baile funk.

Em janeiro, não faltaram policiais atirando a partir de helicópteros quando o Bope e PMs do 7º Batalhão da PM aterrorizaram moradores da Vila Candonza, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. No dia 3 de fevereiro, uma megaoperação com mais de 300 policiais virou do avesso oito favelas da zona norte do Rio numa ação considerada um sucesso por ter recuperado cinco fuzis, uma submetralhadora e quatro pistolas – ainda que tenha deixado para trás um saldo de dez mortos.

Azar de quem nasceu no CEP errado ou pense que as polícias, que zelam pelo cumprimento às leis, deveriam respeitar a mais alta corte do país e parar de matar.

Correção – 2 de março de 2021, 10h15:

Diferentemente do publicado em uma primeira versão deste texto, o helicóptero esquilo Fenix 2 custou 20 milhões de dólares à época da compra, há mais de uma década, e não 20 mil dólares. A informação foi corrigida.