Quem estava no corredor do Crusp, o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, nesta terça-feira, 22, por volta das 13h, presenciou uma cena absurda.
Por Lúcia Rodrigues, compartilhadop de Holofote
Um policial armado com um fuzil caminhava a procura de uma estudante para entregar uma intimação. Estava acompanhado por outra policial e um representante da Guarda Universitária.
O local sempre movimentado, por ser a passagem que dá acesso aos blocos de apartamentos, tinha um fluxo ainda maior de pessoas por ser horário de almoço, em que muitos estudantes saíam do bandejão, o restaurante universitário.
A reportagem de Holofote cruzou com o trio próximo a um dos blocos. Estudantes relatam que o policial armado já havia entrado no Bloco E e subido até o apartamento que achava ser a moradia da estudante.
Como não a encontrou, desceu e passou a abordar pessoas com as mesmas características físicas da estudante, que é preta.
Thainá Cavani, estudante de Saúde Pública, era a pessoa procurada. Ela ouviu o policial perguntar para outra aluna preta, se era a Thainá. A garota respondeu que não.
Amedrontada com o aparato repressivo, Thainá saiu rapidamente do local e ligou para a professora da Geologia da USP Adriana Alves, que já coordenou o Escritório USP Mulheres, para comunicar o que estava acontecendo.
A docente foi ao encontro dela. E estava junto no momento em que os policiais a abordaram dentro do Care (Centro de Acolhimento e Referência para Estudantes), localizado ao lado dos blocos de apartamentos.
No vídeo é possível ver o policial entrando armado segurando o fuzil. Quando a professora Adriana, que também é preta, se identifica, ele solta a arma, relaxa os braços e muda o semblante, sorrindo.Tocador de vídeo00:0002:50
Quando Thainá questiona sobre a presença do fuzil na abordagem, o policial responde que não podia deixá-lo no carro.
A estudante chama a atenção para a estampa da camiseta usada pelo policial. De acordo com ela e com outros estudantes ouvidos por Holofote, trata-se de O Justiceiro, da Marvel, figura cultuada por extremistas de direita dos Estados Unidos.
Moradia
Thainá explica que quem mora no Crusp é a sua companheira, que é aluna do doutorado em Geografia, e não ela.
A intimação recebida nesta terça, de acordo com a estudante, foi movida por um aluno estrangeiro da pós-graduação, que também é preto.
“Eu chamei ele de capitão do mato, porque persegue as pessoas pretas. Disse que ele é um traidor.”
Ela conta que logo depois apareceu uma pixação na parede do apartamento do estudante em que estava escrito: Volta pra África.
Thainá suspeita que a pixação tenha sido feita por gente próxima ao estudante, para tentar incriminá-la.
Mas diz estar tranquila, por ser fácil comprovar que não esteve no bloco em que o estudante mora.” As câmeras do Crusp podem comprovar que eu não entrei lá.”
Estudantes ouvidos pela reportagem de Holofote afirmam que o aluno africano é bolsonarista.
Durante a pandemia, Thainá e a companheira haviam participado de uma assembleia para impedir a colocação de catracas na entrada dos blocos de apartamentos do Crusp.
O estudante que moveu a ação contra ela, que resultou na intimaçao desta terça, era a favor. A proposta foi derrotada e o Crusp continua sem catracas.
Segundo Thainá, a gestão da Amorcrusp (Associação dos Moradores do Crusp) que reunia estudantes de direita e bolsonaristas também foi destituida em assembleia. Isso teria irritado o estudante e seus colegas conservadores.
Ela conta que também passou a ser perseguida por uma assistente social do Care e perdeu o direito inclusive ao benefício da gratuidade na alimentação do bandejão.
A professora Adriana ia justamente acompanhá-la numa reunião com a assistência social nesta terça, para ajudá-la a recuperar o direito perdido.
“Eu sou extremamente pobre, tenho cadastro único social. Estava na primeira lista (da USP) de vulnerabilidade”, frisa.
A estudante fez o cursinho do Núcleo de Consciência Negra da USP e trabalhou lá como secretária.
Hoje está no terceiro ano de Saúde Pública e também é escritora sobre a temática da negritude.
O depoimento de Thainá está agendado para o próximo dia 29. “Já chorei muito por tudo que aconteceu hoje, mas agora estou tranquila”, conta.
Procurada pela reportagem de Holofote, a reitoria da USP divulgou nota assinada pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento em que afirma que não solicitou nem concorda com a ação que envolveu o policial dentro do campus.“Na tarde de hoje (22/03) houve uma ação da Polícia Civil no CARE, movida por um Boletim de Ocorrência relacionado a situação de violência ocorrida no Crusp. Importante esclarecer que a Universidade NÃO REQUEREU NEM CONCORDA com ações dessa natureza, da forma como foi realizada. Envidaremos esforços para que tais eventos não se repitam em nossas dependências”, diz o texto da reitoria.