Politicamente correto, uma defesa

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Por Alex Castro, o blog Papo de Homem – 

Porque as pessoas desprivilegiadas podem nomear a si mesmas.

Nosso uso da língua é e sempre foi político. Não existe, nem poderia existir, linguagem neutra.

O politicamente correto serve para destruir essa ilusão: seu grande mérito é escancaradamente politizar a palavra.

Escancarando a vida política das palavras

Até pouco tempo atrás, uma pessoa brasileira desatenta poderia até pensar que a palavra “presidente” era neutra.

(Não é, nem nunca foi. Barack Obama é tão presidente dos EUA quanto Raul Castro de Cuba, mas grande parte da imprensa brasileira chama o primeiro de “presidente” e o segundo, de “ditador“, como se o uso da palavra “presidente” conferisse alguma legitimidade que querem negar ao cubano.)

Em 2010, entretanto, elegemos uma mulher para a presidência da República e ela manifestou seu desejo de ser chamada de “presidenta”, palavra dicionarizada em nossa língua desde o século XIX. Algumas pessoas aceitaram, outras se recusaram.

Hoje, ninguém mais pode se enganar que escrever “a presidente Dilma” ou “a presidenta Dilma” é uma mera questão de escolha de palavras.

É uma decisão política.

Como, aliás, sempre foi.

Agora, às claras.

Nossa língua é a história dos nossos crimes

Uma marciana perceptiva conseguiria deduzir toda a história de machismo, racismo, homofobia (ou seja, outrofobia) da cultura lusobrasileira simplesmente lendo algumas poucas páginas escritas em português.

Ela encontraria expressões como “não seja xiita“, “pára de judiar do gato” e “não passa um cristão aqui essa hora” e se perguntaria: por que as pessoas membros de uma religião viraram sinônimos de intransigência, de outra de maldade, e, de uma terceira, de pessoa humana genérica? (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a religião dominante dessa cultura.)

Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra homens se referem a uma suposta homossexualidade (“mariquinha”, “viadinho”, “puto”), como se ser homossexual fosse a pior coisa que um homem pudesse ser. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a orientação sexual dominante nessa sociedade.)

Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra mulheres se referem a um suposto excesso de sexualidade (“puta”, “galinha”, “vadia”), como se dispor livremente de seu corpo fosse a pior coisa que uma mulher pudesse fazer. Mais ainda, ela perceberia que muitas e muitas palavras que são neutras no masculino significam variações pejorativas de mulher-que-faz-sexo-demais quando no feminino: aventureira, pistoleira,cachorra. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é o gênero dominante nessa sociedade.)

Nossa marciana perceberia que quase todas as variações de “negro” e “preto” (“enegrecer“, “empretecer” etc) são negativas e, de branco, positivas. Se estivesse lendo textos cariocas, talvez se deparasse com a expressão “neguinho” e, a princípio, talvez, pensasse que é um sinônimo de “pessoa genérica“, até perceber que quase sempre é “neguinho só faz merda” e quase nunca “neguinho tem uma casa linda em Búzios“. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a cor dominante nessa sociedade.)

Nossa História não acabou: ela vive e pulsa e se reproduz nas entrelinhas da nossa língua.

Mas a História não é uma prisão, nem um destino: ela é uma prática.

Que pode e deve ser mudada. No nosso dia-a-dia. Uma palavra de cada vez.

Um pouco de história do politicamente correto

Durante muito tempo, a esquerda se definiu por um certo economicismo, que via nas questões econômicas, como desigualdade social e luta de classes, a contradição principal da sociedade capitalista e fonte de todos os seus conflitos.

Ao longo das décadas de 1960 e 1970, vários movimentos identitários dentro da esquerda começaram a adquirir mais visibilidade e relevância, politizando questões antes vistas como apolíticas (raça, gênero, orientação sexual, currículo escolar, literatura infantil, comida, moda, etc) e trazendo-as para a arena privada, para os cenários do dia-a-dia, para a esfera da interação social. Como dizia o novo slogan feminista, “o pessoal é político“. Não apenas os “proletários do mundo”, mas também pessoas negras, gays, feministas, etc, estavam se unindo politicamente em torno de suas identidades sociais compartilhadas.

Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, enquanto a direita festejava sua (aparente) vitória e a esquerda fazia uma autocrítica de algumas de suas premissas econômicas, houve uma mudança de paradigma dentro da própria esquerda, onde as questões econômicas, apesar de sempre fundamentais, perderam terreno para essas novas “políticas de identidade”, cada vez mais proeminentes.

Ao longo dos anos, a vitória dessa tendência foi tão completa que é fácil esquecer que muitas pessoas de esquerda criticavam essas preocupações identitárias como triviais e irrelevantes (especialmente quando comparadas às “verdadeiras questões da esquerda”, como pobreza, desigualdade, luta de classes) e que foram essas pessoas que inventaram o termo “politicamente correto”, para fazer pouco do que enxergavam como um zelo exagerado nas militantes das causas identitárias.

O que é então o “politicamente correto?”

Se quisermos saber quem são os socialistas, podemos começar lendo o que escrevem as pessoas que se dizem socialistas, como agem na esfera política os partidos ditos socialistas, como se definem as organizações ditas socialistas.

Mas como definir um movimento que não existe de forma concreta, que não tem textos ou cânones que lhe definam, que não possui autoproclamadas líderes ou defensoras?

Na falta dessas pessoas, só quem pode definir o politicamente correto são suas inimigas, mas elas também nem tentam.

O jornalista Leandro Narloch, em suas histórias politicamente incorretas, escritas explicitamente para “jogar tomate na historiografia politicamente correta”, nunca se preocupa em definir politicamente correto e parece simplesmente equacionar “politicamente correto” com “esquerda”. Paradoxalmente, ele ainda enfatiza que está se referindo a uma esquerda que enxergaria tudo pelo lado econômico:

“nessa estrutura simplista [do politicamente correto], o único aspecto que importa é o econômico.”

Mas, como vimos, ironia das ironias, foram justamente os defensores dessa esquerda “que enxerga tudo pelo lado econômico” que inventaram o termo “politicamente correto” para fazer pouco da esquerda “que enxerga tudo pelo lado da identidade”.

Até bem pouco tempo atrás, ainda circulavam pelo Brasil representantes dessa espécie dinossáurica, o esquerdista politicamente incorreto, mas, ironia das ironias de novo, foi o sucesso dos livros de Narloch, ao fortalecer a associação entre “politicamente incorreto” e “direita”, que causou sua extinção definitiva.

Hoje, aos nossos ouvidos, uma pessoa de esquerda se afirmando “politicamente incorreta” parece uma contradição em termos.

* * *

Como o politicamente correto é aquilo que as pessoas que odeiam o politicamente correto dizem que ele é, sua definição será sempre falha, parcial e pejorativa.

Então, uma primeira definição pode ser: politicamente correto é o nome daquele desconforto que tanto incomoda as pessoas que se dizem “politicamente incorretas”.

E o que incomoda essas pessoas?

Sua principal crítica parece ser em relação a uma pretensa “patrulha” que lhes impede de falar algumas coisas que estavam acostumadas a dizer.

Será que o politicamente correto é isso? Uma censura? Um atentado à liberdade de expressão?

Mudando o mundo, uma piada de cada vez

Um dia, um amigo me perguntou:

“Alex, meu tio sempre fez piadas homofóbicas e racistas. Sempre. Agora, depois de levar umas broncas da chefa no escritório, ele parou. Quer dizer, parou lá. Em casa, ele continua fazendo as mesmas piadas e agora reclamando dessa patrulha do politicamente correto. Mas, sério, de que adianta? Meu tio continua o mesmo racista homofóbico que ele sempre foi. O que mudou?”

E eu respondo que mudou tudo.

O seu tio é um adulto que gosta de contar piadas homofóbicas e racistas porque ele cresceu e se formou em um mundo, em uma sociedade, em uma família, onde contar piadas homofóbicas e racistas era aceitável e esperado. Esse comportamento, além de não ter custo social algum, ainda trazia vários benefícios, como ser percebido como uma pessoa divertida, bem-humorada, etc.

Já o filho dele está crescendo em um mundo radicalmente novo.

Na melhor das hipóteses, o filho concorda com a chefa do pai que piadas racistas e homofóbicas são inaceitáveis, está feliz do pai não estar mais contando esse tipo de piada e, naturalmente, quando tiver suas próprias filhas e filhos, não vai lhes contar essas piadas, quebrando assim a corrente de transmissão.

Na pior das hipóteses, mesmo que esteja revoltado do pobre pai estar sendo oprimido pela patrulha do politicamente correto, esse filho também está crescendo no mundo radicalmente novo onde essas piadas não são aceitáveis nem esperadas nem recompensadas, mas sim tem um custo social real. Por mais que esse filho ache que contar piada homofóbica não tem nada demais, amanhã, quando estiver no primeiro dia de trabalho em uma nova empresa, não vai contar uma piada homofóbica (como talvez o pai fizesse sem nem pensar vinte anos antes), porque, mesmo se nenhum colega for homossexual, ele pode estar se queimando severamente no escritório. A corrente de transmissão não se quebra, mas se enfraquece.

Essa pequena diferença, acontecendo milhões e milhões de vezes todos os dias, é o que muda o mundo.

Hospedeiras, não vetores

O racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo, a intolerância, e todas as vertentes possíveis e imagináveis da outrofobia, não têm existência concreta.

A outrofobia precisa da nossa cumplicidade para existir.

* * *

Somos todos crias da mesma sociedade outrofóbica.

Já “sabemos” que ser homossexual é pecado, que pessoas negras têm “cabelo ruim”, que mulheres foram feitas para a maternidade, muito antes de sentirmos em nós mesmas os primeiros desejos homossexuais ou de termos qualquer noção de nossa identidade negra ou feminina.

Então, nada mais natural do que existirem pessoas negras racistas, homossexuais homofóbicas, mulheres machistas: elas não são bugs do sistema, mas sim features. Quando uma pessoa escuta por toda a sua vida que o seu “cabelo é ruim”, nada mais compreensível que ela acredite e nada mais árduo do que vencer essa programação.

Somos todas hospedeiras da cultura outrofóbica. Trazemos dentro de nós todos os xingamentos homofóbicos, todas as piadas racistas, todos os lugares-comuns machistas. (Por isso também ninguém está livre, nem mesmo a mais politizada militante, de escorregar e deixar escapar uma atitude ou fala outrofóbica.)

Mas, se não temos escolha de sermos hospedeiras da cultura outrofóbica, temos escolha sim de sermos vetores.

A escolha de passar adiante esses horrores do passado é só nossa.

A homofobia é um conceito abstrato. Ela não tem existência concreta. O que existe são pessoas que contam piadas homofóbicas.

E eu posso escolher não ser uma delas.

* * *

Talvez o meu amigo Grafite realmente não se importe de ser o Grafite em um escritório de Cláudios e Felipes. Talvez o Grafite considere que, para seus objetivos profissionais, é melhor não virar “o chato do escritório” (“Pô, Grafite, você vê racismo em tudo!”) e decidiu lutar outras batalhas. Não cabe a mim julgá-lo, ainda mais que nunca vou saber a pressão e o preconceito que sofrem um homem negro no Brasil.

Mas eu posso escolher não chamá-lo de Grafite.

Pra mim, ele é o Paulo Roberto.

O poder da palavra

“A palavra tem o poder: de nos tornar empoderadas ou indefesas, de ser fonte de certeza ou de dor. Alguém que age como se não pudéssemos falar por nós mesmas ou se refere a nós por um nome que não reconhecemos está usando a palavra para nos machucar, para roubar nossa subjetividade, para apagar nossa existência. Então, para continuar existindo, respondemos, interpelamos, machucamos. Usar a palavra é negociar os termos de nossa própria existência.”(Alicia Dillon)

Uma das principais lições que a filosofia nos ensinou no século XX é que a palavra molda o mundo.

Nomear é poder. Nossa relação com a realidade é sempre mediada pela palavra: todas as relações de poder passam, em algum momento, pela palavra. Quem nomeia dá o tom, dita as regras, efetiva a posse.

(Não foi à toa que os navegantes portugueses do século XVI subiram e desceram a costa brasileira colocando nome de santo em cada acidente geográfico de uma terra onde mal tinham pisad0.)

Por isso, quando uma pessoa trans* se apresenta socialmente com um nome e um gênero em oposição aos seus documentos, o que ela está fazendo é tomar posse de sua identidade: ela está nos dizendo que sabe mais sobre quem ela é do que qualquer outra pessoa, inclusive seus próprios documentos.

Faz sentido ser contra? Quem teria o direito de lhe brandir o dedo na cara e dizer,“você é Carlos Eduardo que eu sei!”?

Muitas pessoas sentiam-se insultadas e diminuídas ao serem chamadas de “deficientes”, uma definição baseada em um diagnóstico médico. (Seria como chamar alguém de “canceroso” ao invés de simplesmente dizer que “ela tem câncer”.) O movimento “people first” (pessoas primeiro) defende que se coloque as pessoas antes das doenças e que se descreva o que elas têm e não o que são. Por isso, hoje, o termo mais usado é “pessoa com deficiência”. O site governamentalpessoacomdeficiencia.gov.br apresenta inclusive um manual muito interessante para orientar o apoio e o atendimento a essas pessoas.

Faz sentido ser contra? Quem teria o direito de exigir chamá-las de “deficientes”, “cadeirantes” ou o que seja?

(E, aliás, como as pessoas com deficiências não são um bloco homogêneo de opiniões unânimes, também existem algumas que criticam essa expressão e propõem outras.)

Respeitar o modo como as pessoas querem ser tratadas deveria ser uma simples questão de empatia, quando não de boas maneiras: é triste precisar ser um movimento político, e polêmico ainda por cima

Se podemos falar dos “princípios” de algo que nem existe, como o politicamente correto, um deles seguramente seria: nomear a si própria.

Aliás, como as pessoas privilegiadas sempre foram donas do discurso e se autonomearam, na prática estamos falando de estender esse direito também às minorias marginalizadas e desprivilegiadas.

Ou seja, de tirar das pessoas privilegiadas esse poder de nomear o Outro e garantir às pessoas desprivilegiadas o poder de nomear a si mesmas.

Portanto, quando as pessoas privilegiadas reclamam da “patrulha politicamente correta” estão reclamando da perda desse privilégio nomeador.

Uma verdadeira liberdade de expressão

O politicamente correto não oprime, nem patrulha.

Se oprimisse e patrulhasse, teria que ter constituições, leis, códigos, tribunais, inquisições, index, forças policiais e militares; algum poder oficial teria a tarefa de legislar e implementar essas leis; alguma força policial ou militar teria um código para regulamentar as patrulhas nas quais oprimiria a população, aplicando multas, penas, castigos.

Onde está a estrutura opressora do politicamente correto?

* * *

“Patrulha” são soldados armados por um governo que lhes dá poder de matar. “Opressão” é quando instituições, públicas ou privadas, impõem suas regras sobre pessoas comuns.

Só quem tem poder de oprimir e patrulhar são as instituições, o estado, as grandes empresas.

Só quem tem poder de oprimir e patrulhar são as ideologias hegemônicas: o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo, a intolerância religiosa; enfim, todas as vertentes da outrofobia.

Como pode ser “opressor” e “patrulhador” algo tão abstrato, minoritário e indefeso quanto o politicamente correto?

Como pode ser “opressora” e “patrulhadora” uma gota de discurso homoafetivo em um mar cultural de homofobia, um punhado de pessoas trans* autoidentificando seus gêneros em um mundo quase completamente cisgênero, algumas poucas ateias militantes em oposição a todos os padres e pastores, rabinos e imãs?

* * *

O politicamente correto é uma nova ética, resultado de uma maior participação social de minorias até então silenciadas; um código de conduta não-escrito, autodefinido por cada uma de nós, pessoas comuns que não têm poder de impor suas vontades às outras, através do qual tentamos agir e falar da forma que nos parece mais empática e mais generosa.

O politicamente correto somos todas nós decidindo não assistir mais o comediante que faz piada de estuprar grávida, não dar mais às nossas crianças os livros infantis do autor racista, não mais chamar uma minoria pela palavra que ela acha ofensiva.

Como podem acusar esse processo de opressão, patrulha, censura?

Um comediante ter a liberdade (assegurada na constituição) de fazer piada de estupro e nós, pessoas comuns, termos a liberdade (assegurada na constituição) de escrever textos criticando-o e propondo boicotes ao seu show… é a essência da liberdade de expressão em uma sociedade democrática.

Se não isso, o que queriam? Poder falar o que quiserem e nunca ser criticados?

Isso não seria liberdade de expressão, seria privilégio: o privilégio do qual sempre desfrutaram as classes dominantes, o privilégio que o politicamente correto — ao defender uma verdadeira liberdade de expressão, uma liberdade de expressão aberta a todas as pessoas, privilegiadas ou não — lhes tirou.

Nada poderia ser mais anti-censura, anti-patrulha, anti-opressão do que isso.

(Sobre humoristas e politicamente correto, leiam a minha carta aberta às humoristas do Brasil.)

Em qual time queremos estar?

Sim, as militantes de causas identitárias são muitas vezes radicais e cometem excessos. Mas é porque estão na vanguarda.

Quase sempre, só as pessoas mais radicais, aquelas que veem o mundo em branco-e-preto, são as que conseguem efetivamente romper a inércia dos tempos e tomar as atitudes que mudam o mundo, enquanto as pessoas acomodadas olham de longe, balançam a cabeça, fazem “tsc tsc” e têm filhas que vão colher os frutos desse radicalismo.

Então, apesar de todas as ferozes brigas internas, apesar dos (pretensos)radicalismos e dos (ditos) excessos, quando as balas de borracha começam a voar, precisamos decidir se estamos com quem defende respeito e dignidade para as pessoas trans* ou com quem exige o direito de fazer “piada de travesti”.

Se o segundo grupo orgulhosamente se autoproclama “politicamente incorreto”, então não faz sentido as pessoas do primeiro fugirem da pecha de politicamente corretas.

Proponho tomarmos para nós, também com orgulho, esse termo.

Pois eu tenho orgulho de estar do lado oposto dessa gente.

Ressignificando o politicamente correto

Há muito tempo, nos Estados Unidos, as pessoas homossexuais eram chamadas pejorativamente de “queer”, um adjetivo que significa “estranho”. Em um dado momento, a comunidade homossexual tomou o termo para si, criou slogans como“I’m queer and proud of it” (“Sou estranho e tenho orgulho disso!”) e, em poucos anos, conseguiu ressignificar a palavra. Hoje, “queer” não é mais um termo pejorativo: ele pertence à comunidade homossexual.

O termo “politicamente correto” hoje é usado pela direita para fazer pouco das prioridades linguísticas e políticas de uma parte da esquerda — como, por exemplo, utilizar o termo “pessoas com deficiências” e não “deficientes” — mas não existe um movimento “politicamente correto”, ninguém bate no peito pra se dizer “politicamente correta”.

Entretanto, se você acha, como eu, que faz todo o sentido do mundo chamar as “pessoas com deficiências” pela expressão que lhes deixa mais confortáveis, então talvez seja a hora de cooptarmos para nós a expressão “politicamente correto”.

Se ser “politicamente correta” é se importar com o efeito que nossas palavras têm nas outras pessoas, em especial nas pessoas marginalizadas, então, sim, talvez devêssemos bater no peito e nos afirmar “politicamente corretas”.

E a liberdade de expressão?

Não tem como falar de politicamente correto sem falar de liberdade de expressão. Afinal, a principal acusação de seus detratores é que o politicamente correto é inimigo da liberdade de expressão.

Infelizmente, o assunto é vasto e não cabia aqui. O próximo texto dessa série, na semana que vem, se chamará Elogio à (verdadeira) liberdade de expressão e vai tentar explorar o tema.

Mas, para quem não quiser esperar, deixo uma citação que já resume tudo:

“Em vários casos, o princípio liberal da liberdade de expressão, que é uma ideia de “mais liberdade é a solução”, não se aplica. Um conceito importante diz respeito ao efeito silenciador do discurso.
Um bom exemplo é o caso da discriminação contra a mulher. Discursos sexistas, por exemplo, colocam as mulheres em posição de tamanha inferioridade que provocam seu silêncio, desqualificando sua expressão.
Nesse caso, uma intervenção do Estado contra o discurso sexista, ao contrário de limitar a liberdade dos que disseminam o preconceito, garante a expressão daqueles que não conseguiriam se manifestar de outra forma.”(fonte)

* * *

O texto “Politicamente correto, uma defesa” e sua sequência, “Elogio à (verdadeira) liberdade de expressão”, fazem parte da Prisão Privilégio, a ser publicada aqui no PapodeHomem no mês que vem.

Notas de leitura

Esse texto se beneficiou muito da leitura de It’s a PC world. What it means to live in a land gone politically correct, do jornalista britânico Edward Stourton, de 2008. As observações da subseção “Um pouco de história do politicamente correto” são do pensador britânico Stuart Hall, em seu artigo “Some politically incorrect pathways through PC“, de 1994. A citação de Alicia Dillon é uma paráfrase de um post no seu blog: “Do I need to say it?” A filósofa norte-americana Judith Butler, uma das pensadoras mais importantes da nossa era, fala de “ressignificação” em Problemas de gênero (1990) e Excitable Speech (1997), entre outros.

Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios. (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas e Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe,só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.

Agora, estou conduzindo o encontro “As Prisões” no Rio de Janeiro e em São Paulo. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.

O encontro “As Prisões” é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.

O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)

Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.

Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

Durante os anos de 2013 e 2014, levei o encontro “As Prisões” para as cinco regiões do Brasil. Em 2015, o encontro será realizado apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Alex Castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // se gostou, assine minha newslettere receba meus novos textos por email.

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