Por dentro do “Brasil Paralelo”: o modus operandi da produtora de extrema direita

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Em entrevista exclusiva à Fórum, a historiadora Mayara Balestro alerta sobre impactos da atuação da empresa na sociedade: “Maior perigo a longo prazo é sua entrada no imaginário de futuros professores de história”

Mayara Balestro, historiadora e pesquisadora – doutoranda pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Mayara Balestro, historiadora e pesquisadora – doutoranda pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).Créditos: Arquivo pessoal.

Por Raphael Sanz, compartilhado da Revista Fórum




A partir de 2016 já era possível receber anúncios de uma tal de Brasil Paralelo nas redes sociais. Numa primeira olhada, chamava atenção a alta qualidade de som e imagem dos documentários e vídeos que a recém-aberta empresa fazia chegar a usuários do Youtube e do Facebook. Em um segundo momento, surpreendia o discurso. Ali já dava para antever toda a onda de revisionismo histórico, negacionismo da ciência e demonização de qualquer assunto que cheirasse a progressismo que viriam pela frente e colocariam, entre outras coisas, Bolsonaro no poder. O presidente, é bom lembrar logo de cara, participou do primeiro congresso organizado pela empresa junto com seu filho Eduardo.

A Brasil Paralelo acompanhou todo esse processo e, ao longo dos anos em que foi se articulando com os principais think tanks ultraliberais em atividade no País – a exemplo dos institutos Mises Brasil, Liberal e Millenium – também se projetou como uma empresa produtora de conteúdo em ‘paralelo’ com sua notoriedade enquanto ideóloga da, assim chamada, nova direita brasileira. Uma direita que em linhas gerais bebe do ultraliberalismo de Mises e Hayek, expoentes da escola austríaca, e dos espasmos místicos e autoritários do pensamento de Olavo de Carvalho.

Para compreender como funciona, atua, pensa, e quais impactos futuros a produção ideológica da Brasil Paralelo está gerando agora e pode gerar no futuro, a Revista Fórum entrevista a historiadora Mayara Balestro, uma das pesquisadoras a tratar da Brasil Paralelo e das novas direitas brasileiras, que tem ganhado destaque nos últimos meses em participações nos meios de comunicação progressistas e antifascistas.

“Quando assisto ao material deles para analisar e leio os comentários do Youtube, me assusta muito porque reforça a narrativa de que as esquerdas venceram nas universidades e na cultura – e quando se apresenta essa narrativa, você acaba por reforçar os discursos negacionistas e revisionistas, pois a ciência e a cultura estariam ‘contaminadas’ pelos ‘comunistas’. E isso é muito problemático principalmente pensando na educação do Brasil. O maior perigo a longo prazo é que essa ‘realidade paralela’ possa encontrar o imaginário de muitos futuros professores de história (…) Ou a gente tem estômago para entender o modus operandi da extrema direita ou eles vão avançar e nós vamos ficar pra trás”, declarou.

Mayara Balestro é historiadora e pesquisadora paranaense. Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), integra o Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da universidade e pesquisa, além da Brasil Paralelo, as chamadas novas direitas, extrema direita, o fascismo e o autoritarismo. Seu primeiro trabalho sobre a Brasil Paralelo foi feito ao longo do seu mestrado em história pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, concluído em 2021.

Leia a seguir a entrevista completa com ela.

Revista Fórum – Levando em consideração que o Brasil Paralelo é uma empresa produtora de conteúdo que se propõe a oferecer uma versão alternativa de fatos históricos do Brasil e do mundo, o que te chamou a atenção enquanto historiadora na abordagem deles a ponto de levá-la a pesquisar a empresa?https://b23ee5f95dd08dd5550c3de86a7d49f6.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html?n=0

Mayara Balestro – Comecei a pesquisar a Brasil Paralelo para o meu mestrado, no final de 2018, quando um amigo me apresentou um filme deles, o “Brasil, a última cruzada”, e me chamou muito a atenção em como era construída essa narrativa, a partir de fatos históricos já colocados pela historiografia brasileira, sobre a questão da escravidão e do Brasil colonial. Me chamou a atenção a forma como eles deturpam essa história.

Essa narrativa exclui a participação das mulheres nos processos históricos, assim como dos negros e das minorias no geral. É uma história vista de cima, muito enfocada nos “grandes feitos” de “grandes homens”. Então isso me chamou muito a atenção por aparecer em um momento de ascensão do atual presidente Jair Bolsonaro, entre 2018 e 2019, quando ingressei no mestrado. Fiquei atenta a essa empresa e ao discurso que propagava, e vi que está em consonância com esses governos autoritários, seja no Brasil ou na América Latina, e como isso legitimava, no caso brasileiro, algumas posturas e discursos do Jair Bolsonaro.

A produção da empresa ia de encontro com o cenário que víamos naquele momento. Então, como historiadora, fiquei muito preocupada. Mas além do primeiro filme que eu vi, ‘Brasil, a última cruzada’, teve a primeira produção que eles fizeram, que é o ‘Congresso do Brasil Paralelo’, em 2016, no ano que a empresa foi lançada. Esse Congresso reuniu figuras públicas para debater assuntos do Brasil, seja da economia, sobre questões históricas e outros. E dentro desse ‘congresso paralelo’ havia duas figuras já muito conhecidas: Eduardo e Jair Bolsonaro.

Após o contato com esse material, fiquei ainda mais abismada em como era construída essa narrativa. Assim, o objetivo central da minha dissertação não era apenas entender o modus operandi da empresa que está relacionado com a questão do revisionismo histórico ou do negacionismo. Meu foco foi entender a atuação da Brasil Paralelo e, a partir dessa atuação, buscar entender como essas direitas, novas direitas e ‘velhas direitas que querem parecer novas’ do Brasil contemporâneo se articulam com o empresariado.

No caso da Brasil Paralelo, que é o objetivo da pesquisa, busquei monitorar suas interações com o empresariado e as bolhas de extrema-direita a partir das atividades em redes sociais e das produções audiovisuais publicadas. E sobre qual seria o impacto na sociedade da propagação dessas narrativas.

Revista Fórum – Dentro da tua pesquisa, o que você identifica de elementos ideológicos da Brasil Paralelo? Podemos considerá-la olavista, bolsonarista, nacionalista de direita, fascista, ultraliberal…? Com quais doutrinas e linhas ideológicas o conteúdo deles vai se entrelaçar?

Mayara Balestro – É uma linha ideológica muito próxima daquilo que ficou conhecido como “nova direita”. Na minha dissertação consegui identificar um ponto central dela que foi a influência do próprio Hélio Beltrão, um dos fundadores do Instituto Mises Brasil, ligado a escola austríaca, ao pensamento de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek [principais ultraliberais da escola austríaca, que viria a influenciar a escola de Chicago do Paulo Guedes], ou seja, muito ligado com esse pensamento conhecidamente ultraliberal.

Então a principal identificação ideológica dessa nova direita é com esse ultraliberalismo que prega a defesa total da propriedade privada e a diminuição do Estado, com uma participação mínima do Estado em relação a políticas públicas. Eles fazem essa defesa de argumentos ultraliberais, além de se colocarem como conservadores e católicos.

Tem até entrevistas dos sócios fundadores falando sobre a influência do próprio Hélio Beltrão na fundação da empresa, que começou em 2013 com a ideia e se concretizou em 2016. Naquele momento, um dos sócios fundadores da Brasil Paralelo teve seu primeiro contato com o Instituto Mises Brasil na faculdade ESPM, em Porto Alegre.

E além desse ultraliberalismo da escola austríaca, outra grande esfera de influência do conteúdo da empresa é o pensamento do próprio Olavo de Carvalho.

Revista Fórum – Quem financia esse material e por quê? Como a empresa atua?

Mayara Balestro – Não há dados que comprovam que eles tenham recebido financiamento das direitas brasileiras, no caso do Instituto Liberal, Mises Brasil ou Millenium. Mas o que acontece? Eles se articulam junto a essas organizações e se projetam enquanto empresa. A primeira produção como empresa, sem ser necessariamente um conteúdo autoral mas um serviço prestado, foi para o Fórum da Liberdade, que ocorre anualmente em Porto Alegre.

Enquanto se projetam no lugar de empresa dentro desses espaços, eles ainda conseguem projetar, para além da empresa, o próprio projeto ideológico da Brasil Paralelo que se fortalece a partir desses institutos. E assim ganham força em espaços onde se discutem políticas públicas e econômicas que podem ser custosas para a sociedade no caso de um governante que os apoia e participa desse esquema ideológico ser eleito.

A relação orgânica que a Brasil Paralelo tem com esses institutos é muito importante para entender o modus operandi da empresa. Ou seja, como ela vai operar para além das redes sociais, como vai se organizar. Então, quando eles têm esse contato direto com empresários como o Hélio Beltrão, do Instituto Mises Brasil, eles se fortalecem e ganham o apoio do empresário. Esse tipo de relação é muito importante para a operação da empresa. Há outros empresários que já falaram sobre a Brasil Paralelo, falando do próprio conteúdo, mas em linhas gerais, essa operação em conjunto, que se estabelece como uma teia nessas organizações da direita, é muito importante para levar esse projeto a um público maior e legitimá-lo. A partir disso, eles conseguem se projetar para além dos espaços dos institutos e dos agrupamentos mais afins.

Retomando o início da resposta, não há uma comprovação do quanto recebem desses empresários, mas há, sim, uma operação conjunta em que conseguem se projetar a partir da relação com os empresários e institutos da chamada “nova direita” ultraliberal. Isso se soma uma significativa estratégia de marketing no Facebook, Instagram e no Youtube. Eles investem muito em anúncios nessas plataformas e a partir desses investimentos se projetam nas redes não apenas como uma empresa, mas como um projeto político, orgânico, relacionado diretamente com a direita empresarial.

Revista Fórum – Falando especificamente da questão da mulher e do feminismo, uma pauta da qual o bolsonarismo tem se ocupado em desmerecer, notamos uma semelhança no discurso da campanha com o que é pregado pela Brasil Paralelo. A professora de história Ana Caroline Campagnolo, eleita deputada estadual em Santa Catarina pelo PL – partido de Bolsonaro -, deu uma “aula grátis” no canal da empresa sobre feminismo. Ali ela cita correntes mais radicais do feminismo, anticlericais e revolucionárias, como um contraponto minoritário (e totalizante do que seria “o feminismo”) a uma mulher majoritária, que é casada, religiosa e quer ter uma vida tranquila. Ela desenvolve seu pensamento, inclusive, apontando que amplos setores femininos na Europa do fim do século XIX e início do XX seriam contrárias ao sufrágio universal e outros direitos democráticos por não terem interesse em adquirir o que chamou de “responsabilidades políticas”. Como descreveria essa teoria e qual sua razão de ser?

Mayara Balestro – Tinha parado de analisar os materiais deles em 2021, mas agora estou retomando as análises para a minha tese de doutorado. Tenho acompanhado e mapeado essa abordagem sobre o feminismo e me chamou a atenção exatamente a atuação da Ana Campagnolo.

Eles publicaram recentemente o filme “A face oculta do feminismo”, eu assisti por conta da minha pesquisa e pude notar que nessa deformação do que é o movimento feminista há uma tentativa de deslegitimá-lo batendo na pauta da “ideologia de gênero” e colocando-a dentro da narrativa exposta pela Ana Campagnolo.

Nessa abordagem há uma manipulação do pensamento feminista na qual ela tenta reduzi-lo a pautas relacionadas com o pânico moral e o autoritarismo típicos dos setores de extrema direita atuais. E ao longo dessa abordagem, vai culpabilizar os movimentos feministas por uma suposta destruição da família e dos valores, e colocá-lo ao lado do comunismo e do marxismo, dentro do que concebem como tal. Vão dizer que o movimento feminista degrada a família sem em nenhum momento apresentar um material bibliográfico para discutir sobre a temática.

Na plataforma própria da empresa há artigos que falam sobre o movimento feminista, mas ali eles partem da abordagem da Ana Campagnolo para descrever o que seria o movimento feminista e o culpa pela perturbação da imagem da mulher.

O próprio título da produção, “o lado oculto do feminismo”, dá essa pista, ou seja, qual lado é esse que o movimento feminista está tentando esconder. É bem interessante pensar que essa abordagem da Ana Campagnolo vai, depois, se relacionar com o bolsonarismo e o próprio governo Bolsonaro, dando munição para as milícias ideológicas, principalmente em cima da questão da ideologia de gênero e das próprias pautas do movimento feminista no Brasil contemporâneo.

É uma forma de deslegitimar o feminismo, de culpá-lo pelos problemas que existem no Brasil. Saiu uma matéria interessante no Uol recentemente mostrando que quando alguém procura a palavra “feminismo” no Google, entre os primeiros resultados estão os conteúdos da Brasil Paralelo sobre o tema.

Revista Fórum – Quais outros temas você destacaria nas abordagens da empresa nesse mesmo sentido?

Mayara Balestro – Um outro tema muito importante é o revisionismo histórico em torno da ditadura empresarial-militar de 1964. Um dos principais filmes da produtora, se não o principal, é justamente o “1964: o Brasil entre armas e livros”, e fez com que nessa abordagem a Brasil Paralelo tenha alcançado um público significativo. A partir desse público eles apresentam o que acham que foi a ditadura. E a partir dessa narrativa e do tema, conseguem alcançar um nicho muito grande de pessoas que pensam e ressaltam discursos de que “a ditadura matou pouco”, foi “ditabranda” etc.. A Brasil Paralelo tem resgatado muito esse nicho.

Sobre o tema do Brasil colonial, escravidão e história do Brasil, eles farão inclusive um relançamento de “Brasil, a última cruzada”, o filme que citei sobre a independência do país e como ocorreram os “grandes feitos” e “grandes eventos” históricos no Brasil. Colocam um tom de “nós te mostramos o que o professor de história não quer que você veja” para atrair espectadores.

E, além disso, tem a questão do feminismo que falamos, no qual a Ana Campagnolo é a principal referência da Brasil Paralelo para falar sobre o assunto, gravando inclusive aulas semanais dentro da plataforma.

Revista Fórum – Quais os impactos da atuação da Brasil Paralelo que já podem ser vistos na sociedade?

Mayara Balestro – Quando se fala em Brasil Paralelo é preciso levar em conta o projeto político ideológico que está por trás da empresa que é um projeto ultraliberal, conservador e extremamente problemático por se tratar de revisionismo histórico e de negacionismo que, dentro desse contexto, dão legitimidade para, por exemplo, o presidente da República desmerecer pautas do campo progressista – além de excluir, de um ponto de vista mais amplo, a participação das mulheres, dos negros e das minorias desde o processo histórico até a participação e vida contemporânea.

Reforça aquela ideia meritocrática de que o indivíduo consegue as coisas com esforço e em cima coloca o caráter excludente das narrativas. Então é um projeto muito perigoso porque busca normalizar ideias excludentes, revisionistas, negacionistas, machistas e está ligado a discursos ultraliberais e conservadores. Isso se coloca na prática, por exemplo, em sala de aula para professores de ciências humanas, uma vez que desconstruir essas narrativas é muito difícil. São narrativas extremamente confusas, o que obriga o professor a apresentá-las com métodos necessários de análise e abordagem, além de um grande conhecimento historiográfico sobre a temática apresentada.

Então quando assisto o material deles para analisar e leio os comentários do Youtube, me assusta muito porque reforça a narrativa de que as esquerdas venceram nas universidades e na cultura – e quando se apresenta essa narrativa, você acaba por reforçar os discursos negacionistas e revisionistas, pois a ciência e a cultura estariam ‘contaminadas’ pelos ‘comunistas’. E isso é muito problemático principalmente pensando na educação do Brasil porque o maior perigo a longo prazo é que essa ‘realidade paralela’ possa encontrar o imaginário de muitos futuros professores de história.

Revista Fórum – O que pode contar a respeito de perseguições sofridas por você e por outras pessoas que “ousaram” criticar e denunciar as atividades da empresa?

Mayara Balestro – No ano passado, quando recebi a notificação judicial foi muito impactante porque eu estava trabalhando na dissertação e do nada chegou essa notificação por conta de um artigo publicado em parceria com um colega em que falamos sobre a questão da extrema direita e da Brasil Paralelo. Mas depois, conversando com outros colegas que também receberam notificações semelhantes, a minha primeira questão foi pensar em como se proteger juridicamente e emocionalmente para avançar na pesquisa. Assim, tentei criar uma rede de apoio. Depois ocorreram novos episódios, como uma perseguição no Twitter no final de março.

A reflexão que me veio foi de que não estavam atacando a Mayara, mas a Universidade Pública, a pesquisa e a ciência no Brasil. Ou seja, quando eu percebi que eles não estavam me atacando de fato, mas a instituição e a ciência no Brasil, consegui me acalmar um pouco. Mas, de qualquer forma, é muito difícil lidar com isso porque dá receio de trabalhar com essa temática e ser perseguida. Especialmente no Brasil que nós vivemos atualmente. Há também um desgaste emocional. Não estão atacando apenas a mim, mas a toda a instituição, a ciência e a pesquisa, entendi que seria mais fácil lidar com isso estando organizada com essas pessoas e instituições. Não vou parar de pesquisar, esse é um trabalho para a minha vida, e é importante estar ali vendo esses materiais. Geralmente as pessoas me perguntam como que eu tenho estômago para lidar com isso. Mas ou a gente tem estômago para entender o modus operandi da extrema direita ou eles vão avançar e nós vamos ficar pra trás.

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