E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, procura um amigo. às vezes, sentimos saudades de amigos que não vemos há tempos. Hoje, César acordou lembrando deste professor que trabalhou com ele. E como o César tem o dom de escrever, já no café da manhã lavrou esta carta aberta.
Beija-Flor, 23 de maio de 2025.
Jorge, meu irmão camarada, por onde você anda? Depois da aposentaria você tomou chá de sumiço, nunca mais quis falar com ninguém. O que houve, camarada? É uma tentativa de deixar o passado para trás, de usar como filosofia de vida o não se fala mais nisso?
Eu sei que você não lerá esta carta. Fechado em Copas como se dizia, você não está nem aí. Ou talvez esteja, quem sabe.
Hoje é uma data triste para mim. Faz nove anos de falecimento do meu pai. É por isso que eu não acredito mais em coisíssima nenhuma faz tempo. Nem em Deus nem no Diabo, nessas coisas não acredito. De quando em quando, todavia, eu boto fé nas pessoas.
Eu estava fora da nossa escola de origem quando meu pai morreu. Mas eu liguei para lá somente no intuito de informar a você, que era meu chapa. Eu, professor de inglês, você, de educação física numa escola grande da 6ª CRE do munícipio do Rio de Janeiro. Geralmente eu sou uma pessoa sociável, mas estranhamente nesta escola fiz poucos amigos. Eu acabei ficando taciturno, sei lá. Será que enviuvei?
Na primeira confraternização da escola sem você, Daniele e eu nos vestimos com as roupas de Jorge. Fomos de shorts, camiseta, meias e tênis. Só faltou a pochete.
Anos duros viriam, meu camarada. Enviuvar não enviuvei, mas é fato que sua ausência afetou meu rendimento. Porque crença mesmo eu já não tinha. Eu ia à escola por força do hábito, porque não faço mal a uma mosca mas no fundo sou durão como poucos. Estou recomeçando.
Você é/era a cara do Marcelo Crivella. A gente ria disso. Eu imitava o político evangélico para fazer rir. Às vezes você ria, meu camarada, entre um cigarro e outro. A gente fumava à beça entre um tempo vago e outro. E trocávamos ideias a respeito da política do país.
Na pandemia, a diretora Alessandra me ligou: ela estava preocupada com você. Chegou aos ouvidos dela a triste notícia de que você morrera e ela quis tirar a prova. Isto foi num sábado, acredite se puder. Ela me ligou num sábado para falar de você, é provável que ela também tenha feito um esforço interno danado, que tenha seguido sugestões da Marcinha, que sabia que talvez uma ligação minha você atendesse, se vivo estivesse, em nome de nossa amizade.
Foi a última vez que nos falamos. E olha que foi um sacrifício falar com você. Eu peguei o telefone da sua mulher, melhor dizendo, da loja que sua mulher tinha ou tem. E assim nos falamos por uns breves minutos. Foi bom ouvir sua voz. Pela linha telefônica você parecia o mesmo, sem tirar nem por. Eu me lembro que você me disse que saiu da Prefeitura na hora certa. O mundo dava uma fenomenal guinada. Esse mundo capota, Jorge.
Me lembrei aqui de uma coisa engraçada pra cacete. Você, como bom profissional de educação física, era competitivo à beça. No final do ano letivo, quando já não havia mais alunos mas havia a obrigação de cumprimento de horário, passávamos o tempo jogando gol a gol, basquete ou pingue-pongue. Eu não era páreo para você no basquete, apesar da minha altura. No gol a gol, era páreo duro, quase um clássico. E no pingue-pongue, modestamente eu era melhor.
Eu saí daquela escola. História comprida que depois conto. Alguns dos nossos colegas ainda estão por lá, trabalhando duro em prol da educação. É o que a gente sabe fazer, é a nossa tortura e delícia.
Eu não espero de você uma ligação, nada disso. Eu espero apenas que você esteja bem, curtindo a aposentaria. Aliás, cá entre nós, eu nem mesmo sei se irei me aposentar. Acho que não, acho que sim. Depende. O fato é que eu também estou envelhecendo. Há rugas da idade ao redor do meu pescoço, que começa a parecer o de uma tartaruga. Mas quem parecia tartaruga era você, que não tirava a mochila das costas.
Você estava lá pras bandas de Niterói quando a gente se falou. Você queria uma casa maior para o cão que você estava criando. Tomara que você tenha arrumado a casinha para você e para o cachorro. Eu não quero dar pitaco na sua vida, mas dizem que Paquetá é um bom lugar para quem cria cachorros. Pelo menos, essa é a ideia que o meu editor, o senhor Washington Luiz, costuma passar.
Bem, está difícil para mim ir a qualquer lugar, não lhe garanto visitas. Coisas da correria. Correias me impedem. Mas por você, pelo Washington, pelas pessoas que admiro eu sempre tenho vontade de ir mais longe. Nem que seja para dar um abraço e pegar a condução de volta.
Grande abraço do Cícero, um Hugo Calderano antes do tempo,
Cícero César Sotero Batista
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.